Região com a maior concentração de povos isolados e segunda maior terra indígena do Brasil vive à mercê da insegurança provocada pelo narcotráfico e garimpo ilegal
Localizada nos municípios de Atalaia do Norte e Guajará, no oeste do Estado do Amazonas, a Terra Indígena (TI) do Vale do Javari, é a segunda maior do Brasil, com 8.544.482 hectares de floresta equatorial densa - a primeira é TI de Yanomami. Além de fazer fronteira com os países Peru e Colômbia.
Apesar de ser a região que possui maior concentração de povos isolados do mundo, o Vale do Javari está à mercê de insegurança e "abandono" pelos órgãos públicos.
Em entrevista à A CRÍTICA, o assessor jurídico da União dos Povos Indígenas do Vale do Javari (Univaja), Yura Marubo, comentou que a região sofre nas mãos de organizações criminosas, como narcotraficantes, por exemplo.
"O Vale do Javari é a segunda maior terra indígena do Brasil, maior que muitos estados do Brasil e maior até que Portugal. Por ser uma região que faz fronteira diretamente com Peru, do outro lado da margem do rio, e também com a Colômbia. Acaba sendo uma 'artéria' para o tráfico de drogas e organizações criminosas, seja ela para a pesca ilegal ou retirada da madeira ilegal. E agora também com a entrada dos garimpeiros", comentou Marubo.
Ataques constantes
Em recentes episódios, o mundo se chocou com o duplo homicídio brutal do jornalista britânico correspondente do The Guardian, Dominic Phillips e o indigenista e ativista de Direitos Humanos, Bruno Araújo Pereira, que apesar dos corpos terem sido achados e o suspeitos confessaram o crime, o caso segue em investigação pelas autoridades.
Indigenista Bruno Araújo e o jornalista britânico Dom Phillips foram brutalmente assassinados na região do Vale do Javari no Município de Atalaia do Norte (Foto: Reprodução)
Mas, não é a primeira vez que ativistas são vítimas de ações criminosas em terras indígenas. No ano de 2019, Maxciel Pereira dos Santos, servidor da Fundação Nacional do Índio (Funai), foi terrivelmente assassinado no município de Tabatinga, no Amazonas. Maxciel dirigia uma motocicleta quando foi baleado com dois tiros na cabeça. Até hoje o crime não foi solucionado.
"A morte do servidor Maxciel em Tabatinga também é um bom exemplo da insegurança que vivemos. Isso demonstra um cenário jamais visto nos últimos 30 anos no Vale do Javari. Um descaso total. As ações da instituição, como a Funai que ora é constituída para proteger os povos indígenas, não faz", descreveu o assessor da Univaja.
Marubo comenta que a falta de assistência por esses órgãos permite ataques como os de Bruno, Dom e Maxciel ainda mais frequentes e sem o intuito de resolvê-los e reduzi-los.
"[Isso acaba] forçando as organizações indígenas a se tornarem um estado paralelo para fazer a proteção da própria terra, se tornando a polícia para fazer a apreensão e apresentação desses criminosos e o retorno dessas atividades é simplesmente a falta de proteção. Esse é o cenário em que as lideranças indígenas vivem, sendo ameaçadas diretamente, não de forma mais velada. Quando você ataca uma base da frente proteção etnoambiental, você está atacando um Estado como um todo. Isso é uma afronta à Justiça", acrescentou.
De acordo com a Indigenistas Associados (INA), uma organização que reúne funcionários da FUNAI, os postos da autarquia no Vale do Javari sofreram ao menos oito ataques desde 2018. Já em abril daquele ano, a Univaja, também divulgou um alerta para a fragilização da Funai na região, e para o aumento no número de invasões às terras indígenas.
“As bases de fiscalização estão sem recursos humanos e financeiros para ações de fiscalização dos limites da TI. A base de fiscalização do rio Curuçá está praticamente sob a responsabilidade dos próprios indígenas, que colocam em risco as suas vidas para realizar a fiscalização. Por ser no limite do rio Javari, área fronteiriça do Brasil e Peru, onde não há controle de entrada e saída de pessoas estranhas, principalmente de narcotraficantes, ocorrem tentativas de assalto. Essa região é considerada altamente vulnerável”, escreveu a associação.
Lei do 'vale-tudo'
Para o porta-voz da Amazônia do Greenpeace, Danicley de Aguiar, o Brasil se tornou, nos últimos três anos, uma terra em que a única lei válida é do "vale-tudo".
"Vale a invasão e grilagem de territórios; vale a proliferação do garimpo; vale a extração ilegal de madeira; vale todo e qualquer conflito territorial. E vale matar para garantir que nenhuma dessas atividades criminosas sejam impedidas de acontecer. E tudo isso alimentado pelas ações e omissões do governo brasileiro", pontuou Aguiar.
O porta-voz do Greenpeace acrescenta ainda que a região amazônica sofre com o crime organizado por falta de políticas públicas mais assertivas com a finalidade de proteger a Amazônia.
"Abandono e revolta. São esses os sentimentos que devastam todos nós que, daqui ou de fora da Amazônia, entregamos nossas vidas à defesa dessa floresta e de seus povos. Graças às ações e omissões de um governo comprometido com a economia da destruição, ficamos órfãos de dois grandes defensores da Amazônia e, ao mesmo tempo, reféns do crime organizado que hoje é soberano na região", afirmou.
Avanço do crime organizado Em nota divulgada nesta sexta-feira (17) pela Fundação Amazônia Sustentável - órgão em que Bruno Pereira já atuou como colaborador em diversas ações em terras indígena -, a fundação declarou que o assassinato de Bruno e Dom "expõem avanço do crime organizado" na Amazônia. "O brutal assassinato do indigenista Bruno Araújo pereira e do jornalista britânico Dom Phillips no Vale do Javari expõe de forma dramática uma realidade que contamina toda a Amazônia: o avanço do crime organizado. Isso ocorre em maior ou menor grau nos diferentes territórios da Amazônia, tanto no Brasil quanto nos demais países da região", descreve a nota. A FAS acrescenta ainda faz um apelo cobrando ações das autoridades governamentais para que casos como estes não se repitam.
"Infelizmente, esse trágico episódio reflete uma realidade dramática, que resulta em dezenas de mortes de lideranças de povos indígenas, populações tradicionais e ambientalistas, a maior parte delas que termina no anonimato e na impunidade. É urgente uma mudança profunda na gestão pública na Amazônia, desde a narrativa até as ações práticas dos órgãos governamentais. A FAS se solidariza com as famílias das vítimas e reforça ser essencial e urgente uma mudança de orientação em favor da defesa da vida humana e da natureza em toda a Amazônia.", finaliza a nota. PF identifica corpo A Polícia Federal confirmou na tarde de sexta-feira (17) que um dos corpos encontrados em floresta do Vale do Javari, em Atalaia do Norte, no Interior do Amazonas, é de fato do jornalista britânico Dom Phillips. Ele, juntamente com o indigenista Bruno Pereira, foram vítimas de assassinato no dia 4 de junho.
A confirmação veio após a realização de um exame de arcada dentária, realizado em Brasília. Agora falta apenas a confirmação da Polícia Federal se outro corpo encontrado no Vale do Javari era do indigenista Bruno Pereira.
Ainda que a confirmação das mortes de jornalista e indigenista foram confirmadas pela União dos Povos Indígenas do Vale do Javari (Univaja), a Polícia Federal ainda espera o resultado da perícia a ser realizada nos corpos.
Os chamados "remanescentes humanos" das vítimas foram localizados com a coloboração de Amarildo da Costa de Oliveira, conhecido como "Pelado", suspeito confesso da morte de Bruno e Dom.
A PF também informou que as investigações sobre o ataque ao indigenista Bruno Pereira e ao jornalista Dom Philipps continuam e que há “indicativos da participação de mais pessoas na prática criminosa.
Ainda de acordo com a nota divulgada, a PF afirma que os suspeitos agiram sozinhos, “não havendo mandantes nem organização criminosa por trás do delito”.