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ARTIGOS

Diário de quarentena (parte II)

Diário de quarentena (parte II)

Querido diário,

Há noventa dias estávamos iniciando nossa jornada espiritual de combate ao vírus.

No início tudo alarde, mas sem dimensão do que teríamos pela frente, então o alarde se transformou em dados, números de pessoas próximas que conhecemos e então vieram as perdas.

Perdemos vários dos que amamos neste período.

Muitos estão famintos e digo isto no sentido literal da palavra. Nunca a música das Meninas foi tão contemporânea “Analisando essa cadeia hereditária; Quero me livrar dessa situação precária; Onde o rico fica cada vez mais rico; E o pobre cada vez mais pobre”. Leia cantando. Também veio em avalanche a modernização das relações comerciais, isso é sim um ponto positivo a se destacar. A vida está a um clique e quem não se modernizar, fica.

Das pessoas extraímos o que elas são. Se era rude, ficou mais; se era humanista, saltou aos olhos a qualidade. Ninguém, absolutamente ninguém saiu imune de uma crise de desequilíbrio emocional, pois todos somos reais, de verdade.

Os dias de “quarentenados” nos ensinaram que somos máquinas que sentem. Sentimos falta do abraço, do aperto de mão, da ausência mesmo que silenciosa, das chatices de alguns – sim, sentimos falta inclusive dos “malas” da nossa vida. Somos seres sociais, então isso é normal.

A fase inicial foi a do assombro, do jornal, da tv, da notícia no “wpp”, de perder o fôlego com medo do vírus; depois passamos a entender a situação e de fazermos uma limpeza mental, afinal quem não deixou de abrir uma mensagem porque sabia que aquilo não te faria bem?
E cá estamos na fase três, a de respirar fundo, de acreditar que o normal mudou, jamais seremos os mesmos, mas aqui estamos vivos.

Passamos a ler mais, pensar mais, olhar mais ao redor e a valorizar os detalhes. Hoje sei onde ficam os vasinhos de condimentos da minha casa, sei até a senha da minha internet e não peço mais socorro aos meus filhos!

Semana que vem o comércio pode voltar ao normal para algumas atividades e a Peste Chinesa nos deu um ar de novidade para tudo, saudade do “rush” da hora da escola, do almoço atrasado porque todos estávamos ocupados e avexados. Hoje nos sentamos à mesa banhados.

O distanciamento social nos deu visão, olfato, paladar e audição. Ah, a audição tão pouco usada deu lugar a alguém que hoje larga o telefone para ouvir o outro porque é tão bom ter alguém para conversar pessoalmente. Tão bom!

Nos preparemos para a fase do enfrentamento ao vírus, de sair nas ruas com nossa educação sanitária e nossas paranoias adquiridas nestes noventa dias iniciais, afinal ele foram apenas um ensaio para a peça principal que será nossa vida real modificada e, sim, vamos conseguir.
Cuide-se, beba água, se alimente, descanse o corpo e eduque sua mente. Sejamos produtores de boas noticias e não reprodutores de mazelas. Aproveite a vida, pois a simplicidade do momento reflete quem seremos após esta vida – se memórias ou alívio para os que ficam.
Eu quero ser memória.

Por hoje é só.

Ismael Tavares é advogado