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A visão na janela - Com André Fabris

As formigas que enganei

As formigas que enganei

A chuva trouxe o rio

A chuva trouxe o rio

O cinza se espalha, não apenas no céu, mas nas águas turvas dos rios que transbordaram, invadindo a cidade com a indiferença de uma natureza cansada de nós. No meu apartamento, o som dos carros e das conversas é abafado pelo murmúrio constante da chuva — uma chuva que transformou rios estáveis em destruidores, arrastando mais do que água em seu curso.

Aqui estou, no sofá, observando meu cachorro brincar, ansioso por espaços abertos e alegrias simples. Lá em cima, minha namorada em sua reunião, e eu cá embaixo, mergulhado em pensamentos. O cinza do céu reflete o cinza das águas revoltas, o cinza dos destroços que flutuam, o cinza dos olhares que perderam seu brilho. O cinza do vazio que às vezes me absorve.

Aí reflito: os rios, nossos companheiros de sempre, agora parecem ter se voltado contra nós. Uma guerra silenciosa onde não há vencedores, apenas sobreviventes. A chuva, antes acolhedora, agora é temida, pois cada gota é um lembrete das feridas abertas na terra e nas almas.

As pessoas ao meu redor, cada uma imersa em sua própria luta, são como embarcações em um rio sem contorno certo. Minha namorada, agora absorta em suas responsabilidades, ainda que o mundo lá fora insista em desmoronar. Os filhos dela, que aguardam por um futuro incerto. Os amigos deles, que encontram na partilha do luto um alívio para suas dores.

E eu, observador de uma realidade que escapa à minha compreensão, sinto o peso da melancolia que me abate quando estou parado. É um sentimento que se espalha, sutil e frio, como a névoa que se ergue dos rios em manhãs de inverno — um véu que separa o ser do estar, a existência da essência.

Penso na alma da cidade, se ela se reerguerá das águas que a submergiram. Penso no planeta, nas escolhas da humanidade, e nas minhas próprias preocupações — tão pequenas diante da magnitude da perda.

Lembro-me da pandemia, da morte do meu pai. São cicatrizes que o tempo não apaga, que mudam paradigmas. Esse tipo de coisa exige de nós uma posição ativa, mesmo quando a alma está arranhada pela dor.

Mas em meio à desesperança, há um fio tênue de esperança que se tece nas ações de solidariedade. No engajamento daqueles que, apesar de tudo, estendem a mão. Na força que surge quando parece que nada mais resta além da própria esperança.

Nas margens desse rio transbordado, vemos o melhor e o pior da humanidade. Há aqueles que mergulham nas águas revoltas para resgatar vidas e sonhos. E há aqueles que, aproveitando-se da vulnerabilidade alheia, tentam furtar o pouco que restou aos já tão afligidos.

E em cada um de nós, o sofrimento se expande, gasoso e onipresente, ocupando todo o nosso ser. Para alguns, ele é leve como o ar de um dia pesado. Para outros, é denso como o nevoeiro que encobre os rios, opressivo. Mas, para todos, ele está lá, preenchendo cada espaço vazio, cada silêncio do que não foi dito, cada olhar que se desvia.

Esta é a crônica de uma tragédia que flui como um rio em fúria, de uma natureza que nos desafia a repensar nossa relação com ela. E enquanto as águas não se acalmam, que nossas ações possam ser as embarcações que levam conforto e esperança, navegando contra a correnteza da adversidade, rumo a um amanhã mais sereno, um segurando a mão do outro para resgatar outros ainda, o que de fato ocorreu. Enquanto escrevo, me sinto como uma pedra em meio a um rio violento.