Há alguns anos fiz uma audiência no Juizado da Fazenda Pública, momento em que ouvi, pela primeira vez, o título deste artigo. O Autor, que demandava o Município, estava representado por uma Senhora de meia idade, Defensora Pública, cujo nome, lamentavelmente, em função da minha absurda dificuldade em guardar nomes, não consigo lembrar. Ao final da audiência conversávamos sobre a nova moda da cidade, Telexfree, e ela então contou a frase que ouvira do seu pai por anos: “dinheiro não aceita desaforo”.
Lembrei dela hoje.
Chegando na Prefeitura, retornando às pressas do evento de posse de novos médicos, fui chamado ainda na escada por uma servidora com um pedido estranho, precisava de uma carona. Estava atendendo um casal de Venezuelanos, que não sabiam falar português, não conheciam nada da cidade, não tinham dinheiro algum e precisavam chegar na Secretaria de Direitos Humanos, pois pretendiam viajar para Porto Velho.
Casal jovem, bem apessoados, aparentando boa educação, crianças nos braços. Pedi o favor a um dos motoristas da Prefeitura. Precisaram aguardar um pouco, pois, por coincidência, passava em frente ao portão da garagem, na contramão, uma manifestação contra a reforma da previdência. Passado o cortejo, aquela jovem família foi levada à Secretaria de Direitos Humanos, não sei o que aconteceu depois, gostaria de ter notícias.
Imaginei como seria eu, minha esposa e minha filha, em um país diferente, sem dominar a língua, sem dinheiro e naquela situação de absoluta vulnerabilidade. Qual tipo de sofrimento e desespero faz um pai se jogar assim no desconhecido em busca de dias melhores? Pela primeira vez a frase “não podemos virar uma Venezuela”, para mim passou a ter um significado mais próximo.
A Venezuela foi dizimada economicamente muito antes do recente embargo outorgado pelos Estados Unidos. Acabou a brincadeira, não dá mais para sustentar que Hugo Cháves, Maduro e companhia limitada fizeram algo que não dizimar a economia do país. A certidão de óbito da economia Venezuelana veio a lume agora por seu próprio Banco Central. Sim, é oficial. Conforme matéria do jornal El País , do último dia 29, após quatro anos sem publicar seus dados, o Banco Central Venezuelano foi obrigado a socializar as informações econômicas, caso contrário o país perderia o direito a voto dentro do FMI.
Talvez os dados tenham sido maquiados para “dá uma melhorada”, mas não importa. Os números oficiais do Governo demonstram conclusivamente uma economia absolutamente destruída. O PIB do país, em cinco anos, regrediu 52%. Produz-se hoje, na Venezuela, menos da metade do que se produzia há cinco anos. A fome lá não deve ser boato. A moeda, o bolívar, perdeu 99.96% do seu valor. Ou seja, não vale mais porcaria nenhuma.
O Banco Central Venezuelano aponta que a inflação alcançou 130.060% em 2018. Em 2017, situou-se no 862,6%, depois de registrar 274,4% em 2016 e 180,9% em 2015. Os números, entretanto, encontram-se muito abaixo das estimativas da Assembleia Nacional, de consultorias independentes e de organismos multilaterais que calcularam a alta de preços do ano passado em mais de 1.700.000% (1,7 milhão por cento) e preveem que ela irá ultrapassar 10.000.000% (10 milhões por cento) em 2019.
Complicado de entender para boa parte de nós, mais jovens, que não vivemos economicamente ativos o período de alta inflação no Brasil? Seguinte: o cara sai de casa para comprar um pão, se achar algum a venda tem que levar um caminhão cheio de dinheiro se quiser pagar em espécie.
Neste período de apenas cinco anos, segundo o Banco Central Venezuelano, o setor da construção civil caiu 95%, sim é isso mesmo, segundo dados oficiais praticamente não existe mais construção civil no país. O setor industrial caiu 76% e as instituições financeiras 79%.
O país que detém a maior reserva de petróleo do mundo agora raciona combustível em alguns Estados. Com um dólar na Venezuela você consegue comprar 600 milhões de litros de gasolina, mas, por conta do racionamento, o cidadão só pode comprar 30 litros . O salário médio do país é de 6 dólares (R$ 23,40).
Receita para o sucesso: dependência exclusiva do Petróleo; aumento frenético e descontrolado dos gastos públicos, muitíssimo bem recebidos à época; quando o dinheiro acabou, não tem problema, sustentamos a máquina mediante endividamento público; quando endividar não dá conta, a ideia genial, imprimir moeda a vontade, que gerou hiperinflação. Controlar inflação? Fácil, controle de preços, que gerou desabastecimento, estatizações e racionamentos de toda ordem, e por aí vai... vai até quando? Vai até onde?
Talvez esteja neste cenário caótico a origem do sofrimento daquele pai, daquela mãe, dessa família desesperada, que se joga no desconhecido em busca de algo melhor. Fico a imaginar se eles entenderam que a manifestação que passava a sua frente, no portão da garagem, era de resistência a uma proposta que busca maior austeridade do gasto público, que será que passou por suas cabeças?
Eles certamente sofreram na pele a máxima do pai da Dra. Defensora, dinheiro não tolera desaforo. Apenas aderiria acrescentando: sobretudo o recurso público.
Talvez pudesse ter ajudado mais. Sem dúvida poderia. A correria do dia a dia nos impede, às vezes, de perceber que a ajuda necessária é muito maior que uma simples carona. Me arrependi depois de não os ter levado pessoalmente, oferecido uma refeição, talvez a reunião com a Divisão de Inteligência Fiscal pudesse atrasar um pouco. A correria do dia a dia é cruel. Espero que tudo tenha dado certo para aquela família. E que dê certo também para nós, enquanto Estado, enquanto País.
Edson Rigaud Viana Neto
Secretário de Finanças do Município de Rio Branco. Presidente do Conselho de Administração do RBPREV. Procurador do Município de Rio Branco. Especialista em Direito do Estado pela Universidade Federal da Bahia. Especialista em Direito Tributário e Processo Tributário.