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ARTIGOS

Gerson Albuquerque opina: "Reitora coloca a Ufac entre o fio da navalha e a caixa de Pandora"

Gerson Albuquerque opina: "Reitora coloca a Ufac entre o fio da navalha e a caixa de Pandora"

As ações humanas são irreversíveis e imprevisíveis, afirmou Hannah Arendt em um  de seus mais significativos textos, A condição humana. Sobre a imprevisibilidade, que, nas palavras dessa pensadora, gera um sério problema, ligado à caótica incerteza do futuro, o que resta para as pessoas que vivem em comunidade é a faculdade de prometer, ou seja, de criar obrigações por intermédio do ato de prometer, de criar no futuro – esse “oceano de incertezas” – alguma segurança possível, alguma expectativa de melhoria, de realização de algo diferente ou, em outras palavras, de fazer com que os gestores, os governantes, se responsabilizem pelo bem-estar comum daquelas e daqueles que pactuam com eles as formas de poder, as formas de governabilidade, as formas de gestão da coisa pública, as formas de gestão daquilo que é do interesse comum de toda a coletividade. Sob qualquer circunstância, o ato ou a faculdade de prometer é de natureza moral e isso quer dizer que não basta prometer: é necessário prometer e cumprir as promessas. É nisso que se sustenta o poder, que é sempre algo móvel, fluido, microfacetado. O poder é sempre resultado do agir em sociedade, do estar em um mundo plural, um mundo de humanidades iguais/diferentes: quem não cumpre suas promessas se condena ao desamparo, ao erro, ao desnorteamento, a viver enredado em suas próprias contradições e equívocos, a quebrar o pacto com aquelas e aqueles que lhe concederam a governabilidade, isto é, a perder a confiança da comunidade que acreditou em suas promessas, que, uma vez não cumpridas, passam a ser tomadas como meras falácias, como palavras vazias, palavras desacreditadas. O poder é um pacto e, em se tratando de Universidade Federal do Acre (Ufac), não está encastelado na reitoria, está em todos os ambientes da instituição e de seu entorno: quem quebra o pacto, quem não cumpre suas promessas, quem pratica o divórcio entre as palavras e as ações perde a confiança, perde a credibilidade e, desse modo, vive na ilusão de governar, mas não governa. 

Me parece que esse é o risco que a reitora da Ufac decidiu correr, (des)amparada por algumas assessoras e assessores que, entorpecidos pelo longo período de permanência nos postos e nos cargos de comando da instituição, ignoram que assessorar é sinônimo de auxiliar com eficiência técnica e, fundamentalmente, política, posto não ser possível separar o técnico do político; ignoram que assessorar é aconselhar com franqueza, com firmeza, com confiabilidade e, por se tratar de uma instituição pública de Ensino Superior, com competência e com o pleno conhecimento de que a coisa pública não pode ser subordinada aos interesses e às delírios particulares. A rigor, o que fica parecendo é que algumas assessoras e alguns assessores escolheram o caminho da mera bajulação, da mera subserviência, do mero interesse de perpetuação nos cargos, deixando a reitora a nu, supostamente protegida por uma blindagem de fumaça, de palavras de ocasião, de atos superficiais, de perfumarias e clics que se perdem nas nuvens das vaidades e nos clichês que evidenciam fragilidade e geram desconfianças e incertezas quanto ao presente/futuro da instituição.          

Enfatizo essas questões, porque no período de 5 a 19 de maio, o Colegiado do Programa de Pós-Graduação em Letras: Linguagem e Identidade (PPGLI) paralisou as atividades de docentes e de discentes para pleitear recursos financeiros e outras condições para a implementação das exigências e das recomendações constantes da ficha de avaliação do Programa e uma reunião de trabalho com a reitora, considerando que já estamos chegando na metade do terceiro ano da nova quadrienal (2021-2024) da Capes e essas questões têm sido postergadas não só para o PPGLI, mas para todos os demais Programas da Ufac.  

Com relação ao PPGLI, considero relevante destacar que se trata de um Programa que iniciou suas atividades no ano de 2006 e, atualmente, conta com um curso de mestrado que já formou mais de 300 mestres e mestras e um curso de doutorado que está formando a primeira turma de 15 doutores e doutoras. Isso quer dizer que não se trata de um PPG que está sendo implantado, mas de um Programa que alcançou prestígio e reconhecimento regional, nacional e internacional, tendo obtido o conceito 5 na última quadrienal da Capes (2017-2020). Um Programa que é responsável por um periódico de divulgação científica, a revista Muiraquitã, que obteve o Qualis A4 e figura nos estratos superiores no ranking de avaliação da área de Linguística      e     Literatura.     Um     programa     que     mantém     o     LABoratório     de Interculturalidade/LABinter para promover o diálogo intercultural entre pesquisadores indígenas e pesquisadores não indígenas. Um Programa que realiza há quinze anos um dos mais importantes congressos científicos no âmbito da Ufac e conta com um quadro de docentes permanentes que realizam pesquisas reconhecidas e voltadas para os estudos das culturas, das linguagens, das literaturas, das identidades amazônicas. Um Programa que, desde o ano de 2013, promove políticas inclusivas e que, neste ano de 2023, teve a ousadia de dar o pontapé inicial das ações alusivas à Década Internacional das Línguas Indígenas com a abertura de 15 vagas de mestrado e 10 vagas de doutorado voltadas, exclusivamente, para atender professoras e professores indígenas oriundas e oriundos de diversos povos dos mundos andino-amazônicos. 

O grande paradoxo é que, não obstante a tudo isso e ao fato de que o PPGLI é um dos  programas que eleva e valoriza o nome da instituição Ufac, abrimos o ano acadêmico de 2023 sentindo na pele não apenas os efeitos da morosidade, mas da indiferença em relação às nossas demandas básicas para assegurar o pleno funcionamento do Programa, ou seja, para dar conta dos desafios inerentes à manutenção do conceito Muito Bom obtido como resultado da última avaliação feita pelo Sistema Nacional de Pós-Graduação (SNPG). Dentre as principais demandas encaminhadas à reitoria, é possível citar: sala de estudos com computadores conectados à internet e uma impressora para uso dos alunos e professores do Programa; espaço adequado e modernização dos equipamentos para o funcionamento de Laboratórios; bolsas de estagiários/monitores para acompanhar os pós-graduandos indígenas; alocação de recursos financeiros para assegurar que os docentes e discentes do PPGLI realizem suas pesquisas de campo e participem de eventos nacionais e internacionais, estágios e missões de estudo em instituições do Brasil e de outras nações; licitação de serviços gráficos e alocação de recursos financeiros para a publicação de livros e coletâneas do Programa; alocação de código de vaga para docente do PPGLI; alocação de recursos para a modernização e manutenção do Site do Programa e do Periódico Muiraquitã: Revista de Letras e Humanidades; alocação de recursos financeiros para passagens e diárias para custear o deslocamento e a permanência de docentes e pesquisadores de instituições nacionais e internacionais no âmbito do PPGLI, com a finalidade de participar de bancas de defesas, realizar oficinas, conferências, cursos de curta duração; aquisição de novos equipamentos para os grupos de pesquisa do Programa. 

O problema é que, embora o documento formal com as demandas do Colegiado do Programa tenha sido protocolado no dia 9 de maio, somente no dia 15 do mesmo mês, após denúncias publicadas na imprensa local, em algumas redes sociais e em decorrência de uma visita de dezenas de mestrandos, de doutorandos e de docentes às dependências da própria reitoria, finalmente, no dia 17 último, acompanhada por um conjunto de assessores que mais pareciam “peixes fora d’água”, a reitora decidiu aceitar o convite para conversar com a comunidade acadêmica do PPGLI, no “planejado” horário das dez e meia da manhã, colocando em evidência sua pouca ou nenhuma disposição para um diálogo aberto, franco e horizontalizado. Não deu outra: ao invés de uma gestora disposta a ouvir e a tratar de maneira polida e politicamente disposta a apontar soluções de médio e curto prazos para as reivindicações apresentadas, o que se viu foi a tentativa de intimidação, as ameaças veladas, o tensionamento, as palavras de efeito, a cantilena do “não temos recursos e todos têm que fazer sacrifícios”, a retórica balofa e enfadonha da “nossa Ufac” ou do “estamos todos do mesmo lado”, o jogo de empurra, a tentativa de transferir responsabilidades, as respostas rasas, os discursos de ocasião, os clichês, a superficialidade demagógica e a intolerância típicas das tiranias domésticas ou das ultrapassadas pedagogias da opressão que premia estudantes “bem comportados” e servis e suspende ou pune estudantes “mal comportados” e questionadores. 

 Ao término da breve reunião, satisfeita com sua estratégia de esvaziamento do auditório, a reitora assumiu o compromisso de formalizar a resposta ao Colegiado do PPGLI e encaminhar por escrito sua posição às demandas constantes do documento protocolado por intermédio do Sistema Eletrônico de Informação. Porém, mais uma vez, no lugar da resposta o que obtivemos foi o vazio da burocratização acadêmica, indicando o desinteresse da reitora por esse Programa ou, na melhor das hipóteses, sua total incompreensão do que seja a pósgraduação no país. Afirmo isso porque a (anti)resposta da reitora não foi destinada ao Programa de Pós-Graduação em Letras: Linguagem e Identidade, mas às unidades de assessoria da própria reitoria, agora chamadas a responder pela chefa, de viagem marcada para o tradicional proselitismo político no interior do Estado. Eis o lacônico texto da (anti)resposta da reitora:  
 
“À PROPEG, PREFCAM, PROPLAN, ASCOM, NTI e PRAD,  
Conforme deliberando em reunião de busca conjunta de soluções, encaminhamos os autos para prestar as devidas informações/soluções pertinentes a cada unidade, apresentando o devido prazo para cumprimento” (sic).  
 
Com esse despacho, datado do dia 18 de maio, a reitora resolveu sair pela porta dos fundos, se esconder nas entranhas do seu gabinete e assumir a postura de Pôncio Pilatos, aquele governante injusto e infeliz que entrou para a história não por seus grandes feitos, mas por sua omissão e pusilanimidade. No caso do despacho em questão, seu teor protocolar e mal assessorado, significa um lavar as mãos e uma clara omissão frente às cruciais demandas que dizem respeito ao funcionamento e manutenção do PPGLI como um dos programas da Ufac mais bem conceituados pela Capes. A mesma Capes à qual essa mesma reitora, no ano de 2018, quando da submissão do projeto de criação do curso de doutorado de nosso Programa, se dirigiu com estas palavras: 
 
“... A referida proposta de doutorado irá contribuir na formação de profissionais em nível de doutoramento, o que é essencial para garantir a consolidação da pesquisa e reduzirá o êxodo de alunos para outros estados, que saem em busca de qualificação, além proporcionará a fixação de doutores.  
A gestão atual da UFAC se compromete em dar aporte financeiro para o funcionamento do curso de doutorado, seja em estrutura física, compra de equipamentos para laboratório, contratação de docentes para compor o quadro, ou na aquisição de materiais de consumo. 
Sem reservas, eu, em nome da direção administrativa da UFAC, comprometo-me a me dispor para eventuais esclarecimentos com relação à UFAC” (sic).
 
Frente a esses dois documentos formalmente assinados por aquela que ocupa o mais importante cargo de gestão da Ufac, não creio que seja necessário muito esforço para perceber que os atos e o comportamento da reitora frente às atuais demandas do Colegiado do PPGLI não correspondem às palavras e compromissos por ela assumidos e protocolados junto à Capes, no ano de 2018. Em outras palavras, após quatro anos da implantação do curso de doutorado, o mesmo período de tempo em que a administração da Ufac deixou de destinar recursos financeiros na forma de duodécimo para as demandas de pesquisa e extensão do Programa, no momento em que os docentes e discentes desse Programa necessitam do devido aporte financeiro para fazer jus a uma série de ações básicas para sua manutenção, a resposta da reitoria é um obscuro lavar as mãos ou, o que dá no mesmo, um nada honroso descumprimento das promessas que ela própria firmou e subscreveu no momento da criação de um curso da instituição que figura no mais alto nível da carreira acadêmica. 

O mais grave é que tudo isso ocorre no exato momento em que recebemos um conjunto de 25 professoras e professores indígenas de diferentes povos que vivem em territórios no Brasil e no Peru, que, com muita dedicação e mérito, conquistaram vagas para os cursos de mestrado e doutorado do Programa, perfazendo um quarto da comunidade discente do PPGLI. No entanto, as condições precárias em que a quase totalidade desses indígenas estão alojados no âmbito da Ufac também colocam em evidência o descaso e a quebra dos compromissos assumidos pela reitoria da Ufac desde setembro do ano de 2022, quando prometeu envidar todos os esforços para assegurar a permanência das mulheres e homens indígenas em condições dignas de estudo e conclusão de suas dissertações e teses no interior da Ufac.     

Atento à essas promessas não cumpridas, retorno às reflexões de Hannah Arendt, para pontuar que, aparentemente, envaidecida por, há dez anos, se revezar entre a vice-reitoria e a reitoria da instituição, a reitora trata de desconhecer – ou nunca soube – que o poder se produz no viver em comunidade, isto é, resulta de relação constituída na vivência de pessoas iguais/diferentes, na vivência em comunidade ou no viver na heterogênea e plural companhia de outras pessoas. Vivência essa que constitui os elos de produção do poder, uma espécie de pacto que somente se efetiva com a junção inseparável entre as palavras e os atos, entre o fazer promessas e o cumprir promessas, entre o discurso e a ação. “O poder é sempre um potencial de poder, não uma entidade imutável”, eterna, encastelada em palácios, barracões ou gabinetes de instituições públicas. O poder é relação e é discurso que produz prática, que é criativo, mas, também destrutivo. 

Ao banalizar seus atos e ao abusar da faculdade de fazer promessas – e não cumpri-las – a reitora coloca a Ufac entre o fio da navalha e a caixa de Pandora e, no caso do PPGLI, isso quer dizer, por um lado, deixar esse Programa em ameaça constante, à mercê do sacrifício desumano de sua comunidade de docentes, discentes e técnico-administrativos ou, por outro lado, deixar essa comunidade acadêmica em um constante estado de tensão e incertezas quanto ao que pode sair da caixa de Pandora das fantasias de poder à qual parece ter se acostumado a reitora e algumas de suas assessoras e de seus assessores.  

Frente a esse quadro, o que nos resta é a insubmissão como forma de manter a cabeça erguida não apenas para dizer não à falta de condições dignas de trabalho e ao desinteresse da reitoria em alocar de recursos financeiros para a pesquisa e a pós-graduação, mas, também, para recusar as falácias do “nossa Ufac” que circulam em torno de solenidades e festividades de caráter duvidosos, com a distribuição de brindes, rapapés e outras mediocridades provincianas ou em imagens kitsch de sorridentes e “fiéis” casais de amigos em churrascadas e bordas de piscinas para alimentar stories no efêmero mundo Instagram.  
 
 
Rio Branco, Acre, 20 de maio de 2023. 
Gerson R. Albuquerque 
Centro de Educação, Letras e Artes 
Universidade Federal do Acre.