No dia 28 de dezembro de 2022 o prefeito de Rio Branco, Tião Bocalon, publicou o Decreto nº 1920, instituindo o Grupo de Trabalho (GT) que “irá revisar a história da fundação do município de Rio Branco”. A princípio, evidencia-se que a temática a ser priorizada relaciona-se com a data em que supostamente o município foi “criado”, explicitando divergências se o mito de origem a ser utilizado como referência seria o desembarque de Neutel Maia, em 28 de dezembro de 1882, ou a criação da cidade de Penápolis pelo então prefeito do Departamento do Alto Acre, Gabino Besouro, em 13 de junho de 1909. Em meio a esse turbilhão de tempos, dos quais muitos desejam avidamente se apropriar, talvez importe relembrarmos uma passagem do filósofo e crítico literário alemão, Walter Benjamin (1987), que se encontra na obra Magia e técnica, arte e política, mais especificamente no tópico intitulado Sobre o conceito da História. Nela, Benjamin nos lembra que os calendários não servem apenas para marcar o tempo, mas, que são monumentos de uma consciência histórica.
Recorrendo a Fernando Baéz (2010), podemos dizer que as datas comemorativas além de explicitarem decisões do que se deve recordar, também se constituem em uma forma de saber o que se deve esquecer. Não percamos de vista que a eficácia do discurso do poder (do colonizador) está justamente naquilo que ele oculta, está na disposição dos vários sentidos dos silêncios que atravessam as palavras, para cristalizar a hegemonia em uma sociedade hierárquica. Esses sentidos se impõem e avançam, não apenas por meio de conteúdos ensinados nas instituições de ensino. Também se expressam na forma de celebrações, festividades, exposições, de todo um sistema de rituais no qual se organiza, rememora, “legitima” e confirma “naturalidade” à narração dos acontecimentos.
Estes aspectos se evidenciam neste inócuo debate que trata da data do “aniversário” da cidade de Rio Branco. Neste caso, para além de se definir qual número será grafado em um calendário, trata-se de disputas de poder sobre a narrativa a ser sacralizada, definindo os eventos e personagens históricos que serão elevados a condição de “anjos redentores”, devidamente posicionados no “altar” onde são guardadas as memórias que não podem ser questionadas. Os diferentes atores que protagonizam esta superficial, desimportante e monótona contenda esforçam-se em palavras e gestuais para explicitar suas convicções, mas, terminam, como nos ensina Michel de Certeau (1982), por desnudar os lugares de onde falam, ou seja, as conservadoras referencias que orientam seus procedimentos de investigação e escrita.
Revisitam o passado apenas para consagrar a ordem social do seu presente. Contribuem para a construção de uma história, única e monocromática que, a rigor, opera para intensificar o poder, o jugo da lei e o brilho de sua glória. Também usam como estratégia fazer com que a fala do passado, devidamente controlada e ordenada, pronuncie não o passado, mas o presente. É nesse jogo ambíguo entre a invenção do passado e presente que a ressignificação da história vai sendo percebida e “revivida”. Inventa-se uma tradição para justificar a impossibilidade de seu retorno. Louvam o conservadorismo patrimonialista, desejam a repetição e perpetuação da ordem que celebra o patrimônio histórico constituído pelos mitos fundadores, os heróis que os protagonizaram e os objetos fetichizados que os evocam. Não observam, como nos mostra o antropólogo Nestor Garcia Canclini (2008), que esta política autoritária é um teatro monótono.
Observe-se que pouco parecem se importar com o que o historiador Gerson Rodrigues de Albuquerque (2015) chama de multiplicidade cultural, linguística, ambiental, étnica e social da Amazônia acreana. Em uma direção contrária, os senhores e senhoras que buscam controlar o calendário e seu tempo, aparentam ser as vozes que reproduzem preceitos de uma matriz colonial de poder, a partir da qual, de acordo com o semiólogo argentino Walter Mignolo (2017), formam-se relações marcadas por discriminações raciais, étnicas, antropológicas ou nacionais.
Na insaciável ânsia de adorarem Neutel Maia, Gabino Besouro e buscarem as origens de tudo, não percebem que foi através da ideia de “raça” principalmente da cor da pele, que estes colonizadores se valeram para definir o que chamaram de uma “natural” inferioridade física e cultural dos colonizados, impondo, como nos mostra o sociólogo peruano Anibal Quijano (2005), uma única identidade racial, colonial e derrogatória. Assim, as diferentes populações que viviam/vivem na Amazônia acreana, por exemplo, foram grosseira e pejorativamente chamadas de “índios”.
Ressalte-se que reduzir todas as populações originárias a um único termo constitui um flagrante atentado às memórias destes Povos, considerando que a expressão é ao mesmo tempo sinônimo de todos e de ninguém, linguagem cristalizadora de um mundo de complacências e submissões, que reduz ao silêncio e à não-existência. A possibilidade destes mesmos Povos, tornados invisíveis, falarem suas próprias linguagens perturba os esquemas de interpretação, as posições partidárias, as ideologias, a lógica férrea e enferrujada do economicismo desenvolvimentista, da pata do boi, dos desertos de monocultivos.
É possível que saibam disso mas não se importem, pois veem e se querem enquanto colonizadores, o que explicaria a necessidade de exaltar os seus. Como contraponto, compreendemos que mais importante do que registrar datas/monumentos em um calendário, é o desenvolvimento de diálogos/problematizações que confrontem, como nos diz o historiador Durval Muniz de Albuquerque Júnior (2014), com textos que tem por objetivo o prazer, ou seja, que rendem-se as normas, as regras, aos cânones, tão ao gosto dos partícipes da infrutífera disputa de datas, aqui já tratada. Propomos que seja adotado um texto de fruição, que além de transgredir a ordem do discurso, também confronte a ordem social e cultural. No caso do Acre, nos lembra Albuquerque Júnior (2014) que mesmo com a palavra que nomina estes espaços nos remetendo a sabores amargos e ácidos, se sobressaem “sabores adocicados” quando se trata das narrativas sobre sua constituição, enquanto parte da nação brasileira.
Sugerimos aos senhores e senhoras do tempo do calendário, que não seja esquecido que Manoel Urbano da Encarnação teve que “arribar” a saia de índias menores para João Cametá ver quais lhes serviam, conforme noticiado pelo jornal O Município, editado na cidade acreana de Tarauacá, no dia 30 de outubro de 1910”. Da mesma forma, queremos que seja lembrado que o proprietário do seringal Nova Olinda no ano de 1901, identificado como Português, promovia correrias contra indígenas da etnia Bacurau e, não satisfeitos em lhes tirar a vida, prostituia suas mulheres e filhas e ainda roubava seus haveres, suas terras e produtos agrícolas, conforme publicado pelo jornal O Alto Purus, de 29 de setembro de 1912.
Também gostaríamos que os membros do dito GT, assim como os partidários da ideia de que Neutel Maia ou Gabino Besouro são os “pais” da cidade de Rio Branco, não esquecessem que as populações originárias recusaram a submissão e confrontaram os colonizadores. Tenham em mente que, conforme consta em matéria publicada no dia 9 de julho de 1911 pelo jornal Folha do Acre, editado na cidade de Rio Branco – AC, indígenas realizaram diversas “correrias” no Alto Acre, atacando os barracos dos seringais. Como resultado, receosos de novas agressões desceram para Xapuri, entre outros, os seringueiros Alfredo Pires, Jonas Mendes e Manoel Alves.
Estas e muitas outras ações, talvez lhes alertem que estes espaços não eram “sertões”, não estavam “vazios” de gentes e saberes, quando da chegada da empresa da borracha. Portanto, as populações silenciadas aqui já estavam milenarmente estabelecidas, transformando espaços naturais em territórios sociais, expressando sobre os mesmos culturas coletivas e individuais. Essas terras e territórios que hoje habitamos, antes de invadidos e pilhados, contavam com uma diversidade inimaginável de vegetações, águas, gentes que habitavam as margens dos rios, dos igarapés, imersos em florestas prenhes de alimentos e vidas. Não há quase nenhuma marca deles na geografia de cada um dos municípios, seja em forma de monumento, nome de rua, avenida, praça, ou data comemorativa. Nas florestas havia indígenas; depois, indígenas, seringueiros e patrões; depois ainda (ou antes) negros, árabes, portugueses e tantas e tantos. Depois um pouco mais, menos florestas, indígenas e seringueiros, mais capatazes, capangas e patrões dos territórios usurpados.
Assim, levando-se em conta que muitos atores sociais aqui já estavam e muitos outros chegaram, contribuindo para processos de invenção/reinvenção destes lugares, consideramos que seria um momento importante para nos repensarmos enquanto reprodutores de discursos colonizadores. Dessa forma, compreendemos que mais importante que definir e oficializar um mito fundador para a cidade de Rio Branco, representado na forma de um número/monumento exposto em um calendário, que fosse estabelecida uma data para refletirmos sobre as pluralidades de vidas e vivências que sempre caracterizaram a Amazônia acreana e foram silenciadas, violentamente dizimadas mas que resistiram/resistem. Mais importante que enaltecer Gabino Besouro ou Neutel Maia, acreditamos ser a criação do Dia Municipal da Diversidade, abrangendo dimensões étnico-raciais, de orientação sexual, de religiosidade e de culturas.
Referências
ALBUQUERQUE, Gerson Rodrigues de. História e historiografia do Acre: notas sobre os silêncios e a lógica do progresso Revista Tropos, ISSN: 2358-212X, volume 1, número 4, edição de dezembro de 2015.
ALBUQUERQUE JÚNIOR, Durval Muniz de. Por uma história Acre: saberes e sabores da escrita historiográfica. In: ALBUQUERQUE, Gerson Rodrigues de; ANTONACCI, Maria Antonieta (Orgs.). Desde as Amazônias: colóquios. Rio Branco-AC: Editora Nepan, 2014.
BAÉZ, Fernando. A História da Destruição Cultural da América Latina: Da Conquista à Globalização. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2010.
BENJAMIN, W. Sobre o conceito da História. In: BENJAMIN, W. Magia e técnica, arte e política. São Paulo: Editora Brasiliense, 1987.
CANCLINI, Nestor García. Culturas Híbridas – estratégias para entrar e sair da modernidade. São Paulo: Edusp, 2008.
CERTEAU, M. “A Operação Historiográfica”. In: CERTEAU. M. A Escrita da História. Rio de Janeiro: Forense, 2015.
QUIJANO, Anibal. Colonialidade do poder, eurocentrismo e América Latina. In: LANDER, Edgardo (Org.). A colonialidade do saber: eurocentrismo e ciências sociais Perspectivas latino-americanas. Colección Sur Sur, CLACSO, Ciudad Autónoma de Buenos Aires, Argentina. Setembro 2005.
MIGNOLO, Walter. Desafios decoloniais hoje. Epistemologias do Sul, Foz do Iguaçu/PR, 1(1), PP. 12-32, 2017.
[1] Doutor em História Social (USP). Professor Associado da área de História da Universidade Federal do Acre
[2] Educadora, mediadora e articuladora da Cultura.
[3] Indígena do povo M’byá Guarani, Doutorando pelo Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da UNB.