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ARTIGOS

Só porque eu acredito, será que é verdade?

Só porque eu acredito, será que é verdade?

Uma reflexão sobre pós-verdade e o conceito de modernidade líquida, sob a potencialização das redes sociais

Sabe aquela fake news, que por mais absurda que seja, viralizou na internet? E aquela pessoa que defende energicamente, algo sem nenhuma comprovação ou que relata versões de fatos que nunca existiram? Provavelmente você lembrou de alguma situação parecida, seja no mundo real ou virtual. Devo dizer que essa não é uma exclusividade da sua rede de contatos, infelizmente são situações cada vez mais normais em tempos de rede social.

Esses são desdobramentos de um novo fenômeno social chamado pós-verdade. A explicação, consiste numa mudança de comportamento do indivíduo diante de uma informação falsa. As pessoas passaram a internalizar a mentira tal qual uma verdade, pelo simples fato de que concordam com ela.

A fim de entender melhor a pós-verdade, é preciso recorrer ao conceito de modernidade líquida, elaborado pelo sociólogo polonês Zygmund Bauman, que trata de uma abordagem, acerca da fragilidade da vida moderna e a liquidez constante dos laços sociais.

A pós-verdade

A palavra pós-verdade não é de agora, foi eleita pelo dicionário Oxford, como a palavra do ano em 2016. Mas, é inegável que foi impulsionada após os últimos processos eleitorais, ocorridos nos Estados Unidos (2016) e Brasil (2018).

Pós-verdade é uma consequência da estratégia de desinformação, que criou um fenômeno social na comunicação, com a finalidade de interferir na opinião pública. No intuito de alcançar valores e crenças individuais, informações falsas, incompletas e fora do contexto, passaram a ser minuciosamente elaboradas.

A vontade em acreditar que um determinado relato fosse realmente verdadeiro, fez com que todos os aspectos reais como a própria História, pesquisas e todo um arcabouço científico, passassem a ser desprezados. A veracidade do fato, passou a estar intrinsecamente relacionada à questão de concordar ou não, com aquela informação.

Podemos elencar como engrenagens importantes na fabricação da pós-verdade: a massificação do compartilhamento de notícias, a desqualificação de pessoas que pensam o contrário, a desqualificação da imprensa oficial e dos grandes conglomerados jornalísticos e o forte apelo à emoção.

A massificação do compartilhamento de notícias é tão importante, que tem até estratégia própria, o chamado “firehose of falsehood”, algo como “mangueira de falsidade”. A operação consiste no compartilhamento rápido, contínuo e repetitivo, em diversas plataformas e de forma simultânea. A lógica é a de que o bombardeio vindo de várias fontes, formatos (vídeos, áudios e textos) e enviadas por amigos, postadas em sites e publicadas por veículos da imprensa tradicional, cria uma bolha e a sensação de confiança, acentuando o processo de convencimento.

Quanto aos meios de comunicação tradicionais e oficiosos, estes passam por um processo de fragilização e descredibilidade, orquestrada muitas vezes por grupos políticos e financiados pela elite econômica.

O apelo à emoção é outra marca da pós-verdade. Enquanto mais intenso se consegue tocar a pessoa que recebe a informação, reafirmando aquilo que ela acredita e que gostaria que estivesse acontecendo de verdade, maior eficácia terá a distorção da realidade.

O ambiente da política é terreno fértil a favor da pós-verdade. Políticos vislumbram com bons olhos, a possibilidade de criar narrativas e propagar o surgimento de uma nova visão sobre os fatos. Produz-se um prisma para ocultar os bastidores da gestão.

O maniqueísmo que dominou o último processo eleitoral, ajudou a fomentar o desprezo pela realidade. A ideia de que “se eu acredito, é verdade”, tomou proporções assustadoras nos grupos de Whatsapp, durante o período eleitoral de 2018 e 2022.

A modernidade líquida

O conceito de modernidade líquida apresentado por Bauman, é o resultado da observação do comportamento humano, diante da fragilidade imposta por constantes mutações da vida moderna.

Em tempos de redes sociais, somos impulsionados a estabelecer conexões com o máximo de pessoas, mas sem tanto envolvimento. São amizades superficiais. Esse tipo de relação geralmente não ultrapassa as curtidas em postagens felizes ou os emojis de carinha triste, em algum momento ruim da vida. É uma relação leve, sem profundidade e sem cobranças, o que as torna cômodas.

Quantos dos seguidores podemos considerar realmente amigos? Em muitas vezes, não existe uma relação de troca, são somente espectadores da vida alheia, uma espécie de satélite que só órbita e monitora de longe, mas que quase nunca faz contato direto.

Bauman explica que as relações foram fragilizadas ao longo do tempo. Ao passo em que ampliamos as quantidades, perdemos na solidez dessas relações. A incerteza e insegurança da atualidade, gerou uma modernidade líquida, onde os valores duradouros são desprezados.

A relação com o outro na rede social é bem mais fácil, pois permanece nutrida apenas com a demonstração efêmera do like. Esse é um ponto fundamental da modernidade líquida: as relações descartáveis não precisam de afetos intensos e profundos. Nesse contexto, há um encaixe perfeito com a proposta algorítmica das plataformas das redes sociais, onde o que interessa é apenas a superficialidade de gerar engajamento por meio de curtidas e visualizações.

Essa nova forma temporária de relação, moldada pela velocidade e incertezas do mundo moderno, influencia também na definição de uma identidade e história de vida. Diante desse plano de transformações, o indivíduo vive numa sensação de sempre esperar o amanhã, tornando um desafio a busca por laços mais rígidos e duradouros.

As redes sociais

As redes sociais compõem um ambiente de constante transformação na forma de comunicar e no comportamento das pessoas. As plataformas como Instagram, Facebook, Twitter, YouTube e Tik Tok, apresentam diferentes propostas, induzindo usuários a diversificar o teor das postagens, ou seja, cria-se traços distintos na identidade do indivíduo, dependendo da plataforma em que está produzindo o conteúdo.

Esse cenário de muitas versões, discussões e curtidas, é o ambiente que a programação emprega nas redes sociais. As pessoas são encorajadas dentro da sua bolha — lugar onde os iguais se encontram e interagem — a emitir opiniões que sempre serão aceitas e reafirmadas pelos seus pares. Depois disso, o algoritmo expõe a postagem para grupos contrários e aí começam os debates e conflitos intermináveis.

O anonimato da internet, também confere encorajamento. Diante da possibilidade da impunidade, os perfis falsos são estimulados a dizer o que pensam, muitas vezes com opiniões formadas apenas na convicção do emissor, contendo tons agressivos, ofendendo a honra e a reputação.

A pós-verdade líquida

A pós-verdade e a modernidade líquida, se entrelaçam diante do fato de que uma retroalimenta a outra. O mundo acelera constantemente e isso altera a forma de nos relacionar e agir diante dos novos desafios.

As incertezas e a superficialidades da vida em sociedade, facilitam a proliferação de narrativas enganosas, por outro lado, a desconfiança nas instituições e propagação de fake news, alimentam a liquidez da vida contemporânea.

O combate à pós-verdade nas redes sociais

Para iniciar o combate à pós-verdade, é preciso agir em relação às fake news. Grandes empresas como a Meta (Facebook, Instagram e WhatsApp) e a Google (YouTube), afirmam em seus relatórios anuais, que investem milhões de dólares na guerra contra às notícias falsas. Aparentemente, esse investimento não tem surtido tanto efeito prático.

A legislação brasileira também precisa evoluir no tocante ao Direito digital, a tecnologia avança de forma rápida e o regramento precisa acompanhar essas mudanças. Tivemos algumas melhorias nos últimos anos, como exemplo a publicação da Lei nº 12.965 de 2014, conhecida como o Marco Civil da Internet no Brasil, que estabelece princípios, garantias, direitos e deveres para o uso da internet no país.

Conforme a lei, as empresas de mídia social somente encontram-se obrigadas a excluir uma publicação, caso exista uma ordem judicial - com exceção da nudez não consentida. O provedor de conexão à internet também não será responsabilizado civilmente por danos decorrentes de conteúdo gerado por terceiros. Alguns críticos, alertam que essa regra desestimula as empresas no combate às postagens ofensivas, assim como às fake news.

Está em discussão na Câmara Federal, o Projeto de Lei n° 2.630/2020, a chamada PL das Fake News, cujo objetivo é alterar o Marco Civil da Internet. São diversas propostas, com destaque para o artigo atinente à responsabilidade das empresas. Na proposta, passa a incluir as postagens de cunho antidemocrático, nos casos de autorização para remoção sem a necessidade prévia de uma ordem judicial.

Outra situação importante, é a proibição dos disparos em massa de "fato que se sabe inverídico", assim como a fixação de multas de até 10% da receita da empresa, por infração, com limite de até R$ 50 milhões.

A inteligência artificial pode ser utilizada como importante ferramenta de identificação de conteúdo enganoso. A tecnologia pode instantaneamente detectar possível conteúdo falso, restringir a distribuição da postagem e remeter a checagem dos fatos.

Nessa proposta de fluxo, a postagem não seria removida de imediato, a fim de evitar conflito com uma possível restrição à liberdade de expressão, haja vista que seria uma ação da empresa proprietária da plataforma social, sem o amparo de uma determinação judicial. Essa medida após aplicada, empregaria agilidade e evitaria um dano bem maior.

A tecnologia deve contribuir muito para evitar a desinformação no ambiente virtual, mas duvidar da veracidade daquilo que está recebendo e somente repassar quando vier de fonte segura, é primordial. Precaução e olhar para os lados quando atravessa a rua, nunca fez mal a ninguém.

 

Pablo Mendes é acreano, cursou História e Jornalismo, atualmente é acadêmico de Direito e Gestor de Tecnologia da Informação e Comunicação (TIC).