É manhã e a cidade ainda se espreguiça sob a luz dourada que se derrama. O trânsito, manso e ordeiro como riacho em leito de pedras polidas, desliza em seu ritmo preguiçoso. Um carro compacto azul-celeste, qual besouro a zumbir pela via, interrompe seu voo diante da faixa branca, concedendo passagem a um jovem casal, que, de mãos dadas, cruza a rua como quem desbrava um campo florido.
E os canteiros, tais como bordados a colorir a cidade, ostentam flores alvas e amareladas, em contraste com o verde das araucárias e dos ipês, sentinelas que guarnecem as ruas.
Meus olhos passeiam pela cidade, e o que veem me alegra a alma: ruas limpas, organizadas, casas com fachadas em tons pastéis – rosa delicado, verde-menta, amarelo suave – e jardins floridos. Com lojinhas e cafés charmosos entre os prédios modernos, é uma cidade que transpira tranquilidade.
Chego ao meu local de labuta, onde os colegas me recebem com sorrisos genuínos e palavras amáveis. Após o expediente, deleito-me com um café na companhia de amigos, entre risadas e histórias que fariam inveja aos contos de Scheherazade. E o melhor: ainda tenho tempo para praticar atividades físicas salutares, como vôlei e corrida, nutrir o intelecto com a leitura de um bom livro e até mesmo me conectar ao mundo virtual sem nenhuma pressa frenética. Sim, uma jornada de trabalho de seis horas com finais de semana de três dias permitem isso.
Em casa, a sinfonia da água a deslizar sobre as pedras da pequena cachoeira construída é um canto que embala a alma. Nessa casa térrea, a figueira majestosa, sábia anciã, estende seus braços frondosos no centro a céu aberto da morada. As paredes de vidro esmaecem a fronteira entre o dentro e o fora, e a natureza se torna cúmplice dos momentos em família. Ali, entre risos e confidências, o tempo se aquieta e a pureza da vida se revela.
De repente, o sinal fica verde, meus olhos abrem e a realidade me atinge, a cidade feia, o trânsito agressivo, os conflitos familiares, o trabalho excessivo, a rotina repetitiva, tudo a sufocar, a oprimir, a lembrar da fragilidade da beleza, da paz, do efêmero momento de alegria.
Mas, ao olhar os rostos cansados dos outros, percebo-me refletido em cada um, como em um vitral fragmentado. E nesse vitral de semblantes exaustos, vislumbro a pequena chama luminosa, ainda acesa, a cintilar em meio à fumaça do caos. No fundo, quase todos buscamos paz.
Quem sabe, meu devaneio não seja senão o anseio de cada alma que cruza meu caminho.
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André é cronista e advogado no Rio Grande do Sul.