O aroma forte e intenso do café me envolve como um cobertor enquanto a brisa da manhã traz o odor terroso do asfalto molhado, das flores lá embaixo e a lembrança distante das queimadas no Norte, que ainda afetam o céu da minha cidade.
Uma neblina um tanto densa cobre a paisagem, mas o canto dos pássaros, ainda que triste, enche o ar com a esperança dos sobreviventes. Sabiás-laranjeira, bem-te-vis, e até um casal de pombos, que insiste em tentar fazer ninho na janela do banheiro, todos buscando refúgio e alimento após as enchentes de maio.
Observo os prédios distantes, seus contornos um pouco esfumaçados na névoa, e as árvores bailando ao vento, que me fazem lembrar de um bosque específico, meu refúgio secreto em meio ao caos.
Cada gole do café, quente e amargo, me desperta, mas a noite anterior ainda é vívida. A luz do abajur desenhava sombras na parede, alongando os móveis e criando figuras fantásticas. O perfume doce e suave da Pati se misturava com o cheiro do amaciante na fronha.
O lençol fresco acariciava minha pele, e o silêncio se tornava um manto acolhedor. No limiar entre a consciência e o inconsciente, surgia o "som do sono". Suaves murmúrios que inundam a mente, como um rio tranquilo a correr por entre as pedras. Grilos e vaga-lumes a cantar e dançar na escuridão.
Em algum momento, me rendi ao sono, mergulhando em suas águas tranquilas.
O som do sono une a todos, evocando uma solidariedade inerente à natureza humana. Assim como o universo busca harmonia, nós também podemos. Nos momentos de aflição, pensemos nessa melodia interior, nesse estado de serenidade.
Meu pai, que perdeu a audição aos 13 anos, pôde contar com a ajuda de aparelhos auditivos apenas anos depois, somados à leitura labial. Sua busca constante por entender o mundo, mesmo com as limitações, me impulsiona a buscar a serenidade que encontrou em meio ao silêncio. Se ele podia construir pontes entre o mundo silencioso e o mundo dos sons, nós também podemos.
A lembrança do som do sono, além de ser um momento antes de adormecer, me fortalece e guia na busca por harmonia e paz interior. Alegrar-me-ia se cada um encontrasse em si uma melodia como essa, que fosse um abrigo, assim como as estrelas floridas que Antoine de Saint-Exupéry descreveu em “O Pequeno Príncipe”:
Se tu amas uma flor que se acha numa estrela, é doce, de noite, olhar o céu. Todas as estrelas estão floridas.
André Fabris, cronista e advogado no Rio Grande do Sul.