Ah, o maravilhoso mundo dos presídios brasileiros, um lugar onde a realidade é tão confortável e fraterna quanto cumprimento de ex-cônjuges em audiência na Vara de Família. E, como se fosse uma aparição divina, eis que uma das nossas ilustres autoridades da justiça surge para lançar sua luminosa visão sobre esse reino de pesadelos. A Ministra Carmén Lúcia, que já presidiu o Supremo Tribunal Federal e o Conselho Nacional de Justiça entre 2016 e 2018, apareceu recentemente em um vídeo viral na internet, revelando sua total perplexidade ao constatar que os presos são segregados por facções. Sim, você leu certo, divididos por facções em prisões! Quem poderia imaginar?
A Ministra, ao mencionar um projeto de lei que visa proibir essa prática, aparentemente ficou tão chocada quanto um ser humano que acaba de descobrir que água é molhada. Ela parece não ter a menor ideia de que essa é a norma e não a exceção nos estabelecimentos carcerários. Um estudo, para os que estão incrédulos, aponta que cerca de um terço das prisões no país adotam essa prática. E para os que duvidam, basta uma rápida busca no Google com as palavras-chave "separação de presos por facção" para entender a encrenca em que estamos metidos.
E sobre o Projeto de Lei 2.235/21 (que a Excelentíssima Ministra cita no famigerado vídeo), que tenta proibir essa divisão por critérios de facções? Bem, só o tempo dirá se o pessoal em Brasília conseguirá descer de seus pedestais e se conectar com a realidade. Mas, infelizmente, dada a origem e o teor da proposta, a probabilidade disso acontecer é menor do que a chance de nevar em Rio Branco.
Recentemente, o Supremo Tribunal Federal reconheceu que o sistema prisional brasileiro é uma bagunça total, com a ADPF de nº 347 (Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental) estabelecendo um prazo de seis meses para que o governo federal crie um plano mirabolante para resolver problemas crônicos, como a superlotação, a quantidade excessiva de presos provisórios e a manutenção em regimes mais severos do que suas penas exigiriam.
Entretanto, a situação dos presídios não se limita apenas ao cenário nacional. No estado do Acre, a realidade há anos também é complexa, onde três facções rivais comandam quase que a totalidade do território carcerário. A organização dos detentos, como na maioria dos presídios brasileiros, é dividida por pavilhões, e qualquer proximidade entre esses grupos pode resultar em rebeliões ou massacres, como o recente e chocante episódio ocorrido no Presídio de Segurança Máxima Antônio Amaro, que culminou com cinco mortos, três deles decapitados.
Essa tensão nas prisões não é algo recente, é uma tradição de longa data. Enquanto os detentos, agentes penitenciários, advogados e familiares lidam com essa realidade aterradora diariamente, nossos nobres magistrados parecem viver em um mundo paralelo, usufruindo de suas salas com ar-condicionado no 15, cercados de seguranças e assessores, e regados pelas mais diversas regalias que o poder público pode (ou não) conceder.
Nesse cenário sombrio, a advocacia criminal assume o papel de protagonista, lutando para dar voz aos que estão perdidos nas entranhas do sistema, buscando uma oportunidade de redenção em meio ao pesadelo. Os advogados testemunham o caos de perto, enfrentando diariamente os desafios de um sistema que muitas vezes parece acreditar que direitos humanos são um conceito opcional.
Portanto, a surpresa da Ministra Carmén Lúcia diante da realidade carcerária é um lembrete de que precisamos urgentemente de uma caravana do Conselho Nacional de Justiça para fazer uma visita ao mundo real das prisões. Talvez quando os que decidem passarem um tempinho lá, e sentirem na pele as delícias do sistema carcerário, poderemos finalmente esperar por uma reforma eficaz. Até lá, a advocacia continuará sendo o grito da razão, lutando pelos desvalidos em um sistema que mais se assemelha a um circo grotesco do que a um sistema de justiça.
*Advogado e membro da Comissão de Advocacia Criminal da OAB/AC.