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O Outro Lado - Com Roraima Rocha

Sim, Rio Branco já tem uma "cracolândia" para chamar de sua!

Sim, Rio Branco já tem uma "cracolândia" para chamar de sua!

Por mais de uma década, pude trabalhar na intricada teia da Assistência Social de Rio Branco. Tive o privilégio de vivenciar de perto as mazelas e carências de uma esfera frequentemente relegada ao plano secundário pelos administradores municipais e, assim posso escrever essas linhas com algum conhecimento, sem que sejam apenas palavras a ermo e “achismos”. É uma área que ganha destaque na grande maioria das vezes oportunamente, em anos eleitorais e em períodos de alagação, quando os políticos aproveitam para fazer assistencialismo barato e posar para fotos que em seguida irão para suas redes ególatras.

A problemática das áreas urbanas conhecidas como "cracolândias" é uma questão que aflige inúmeras cidades brasileiras, e em Rio Branco não é diferente. Essas regiões tornaram-se símbolos de desafios complexos relacionados ao desenvolvimento urbano, desvalorização imobiliária, segurança pública, bem-estar social, saúde pública e, acima de tudo, as políticas públicas de assistência social no Brasil.

No contexto nacional, a Constituição Federal de 1988 e a Lei Orgânica da Assistência Social (LOAS) estabelecem o direito à assistência social como uma forma de proteção à população em situação de vulnerabilidade. O Sistema Único de Assistência Social (SUAS) desempenha um papel crucial na implementação dessas políticas. No entanto, a eficácia dessas políticas e sua adaptação à realidade local são desafios constantes. O Centro de Referência Especializado para a População em Situação de Rua, conhecido como Centro POP, é uma peça-chave nesse quebra-cabeça. Em Rio Branco, o Centro POP desempenha um papel vital, fornecendo atendimento especializado, acolhimento, orientação e encaminhamento para direitos e serviços. Através de serviços psicossociais, busca-se a reintegração social e a recuperação da cidadania daqueles que se encontram em situação de rua. O Centro POP é uma manifestação concreta das políticas de assistência social, cujo objetivo é melhorar a qualidade de vida da população em situação de rua.

À medida que enfrentamos a realidade local, é preocupante observar o aumento no número de pessoas em situação de rua em Rio Branco, que saltou de 325 em 2021 para quase 500 em 2023, segundo o Ministério Público do Acre. Essa tendência é um sintoma dos desafios mais amplos que enfrentamos em nossa sociedade, incluindo a dependência química, que muitas vezes é a razão pela qual as pessoas acabam nas ruas. A recuperação de dependentes químicos é um processo complexo que requer decisão pessoal, e os esforços das políticas públicas precisam ser direcionados para apoiar essa decisão.

É crucial destacar que as "cracolândias" não afetam apenas aqueles vivem/frequentam/circulam por elas. O aumento na concentração de pessoas em situação de rua nas áreas urbanas também gera problemas de segurança e degradação do ambiente, impactando a qualidade de vida de todos os cidadãos. É fundamental destacar que a situação em Rio Branco não é apenas uma realidade estatística. No último domingo (29) um trágico evento ocorreu a menos de 200 metros do Centro POP, onde um morador de rua perdeu a vida, possivelmente devido a uma overdose. Esta é uma dolorosa lembrança de que o problema está à porta de nossas instituições de assistência, clamando por ações efetivas e imediatas.

Experiências bem-sucedidas em todo o mundo podem nos fornecer lições valiosas. Por exemplo, na Suíça, a criação de "salas de injeção segura" e uma abordagem de redução de danos ajudaram a minimizar os problemas associados ao uso de drogas em áreas urbanas, inclusive a Suíça tinha a maior taxa de infecção por HIV na Europa Ocidental, em parte devido ao compartilhamento de seringas para injetar drogas. Entre 1991 e 2010, o número de overdoses fatais no país caiu pela metade, ao mesmo tempo, as infecções por HIV foram reduzidas em 65%, e a quantidade de novos usuários de heroína caiu 80%.

Nos anos 1980 e 1990, Frankfurt (Alemanha) enfrentou um desafio significativo com uma grande concentração de dependentes químicos nas proximidades de sua estação ferroviária. No entanto, a cidade alemã conseguiu superar esse problema através da implementação de terapias de substituição, substituindo a heroína por opioides controlados. Essa abordagem não focava na abstinência, mas sim na melhoria da saúde física e mental dos dependentes, bem como na reintegração social. Hoje, mais de 30 anos depois, a antiga "Cracolândia" de Frankfurt é uma página virada na história da cidade, destacando a eficácia das terapias de substituição no tratamento de dependentes químicos.

É curioso, e talvez um tanto irônico, que, ao abordar a problemática das "cracolândias" em nosso país, sejamos compelidos a lançar um olhar distante, quase utópico, a realidades que, num primeiro olhar, parecem inatingíveis à luz de nossa legislação (sei que algumas ideias precisariam de aprovação da Câmara e do Senado) e das complexidades singulares que enfrentamos. Entretanto, é na contemplação dessas experiências distantes, em terras estrangeiras, que vislumbramos uma possibilidade: a de refletir sobre boas práticas que, de alguma forma, podem lançar luz sobre nosso próprio caminho.

A criação de "salas de injeção segura" na Suíça e as terapias de substituição na Alemanha, são exemplos de esforços que transcendem fronteiras geográficas. Não podemos ignorar que tais realidades distantes nem sempre se ajustam perfeitamente à nossa própria, mas desvelam um potencial de inspiração.

Reconheçamos que não é necessário reinventar a roda. O que se faz vital é a capacidade de discernimento, a habilidade de analisar essas experiências sob a lente de nossa própria realidade, considerando nossa legislação, cultura e desafios únicos. O que se torna essencial é a percepção de que, apesar das disparidades evidentes, é possível extrair lições valiosas, princípios orientadores e, acima de tudo, a compreensão de que o enfrentamento das "cracolândias" exige uma abordagem multidisciplinar, unindo assistência social, tratamento de vícios e medidas de segurança.

Em última instância, é na busca pela combinação apropriada desses elementos, moldada pela realidade de Rio Branco e do Brasil como um todo, que reside a esperança de transformar o cenário sombrio que envolve as "cracolândias" em um horizonte mais promissor, onde a dignidade e a recuperação se tornem realidade, não apenas uma utopia distante.

Retornando à nossa Rio Branco, o Centro tornou-se, lamentavelmente, um campo de batalha para facções criminosas, que disputam o domínio dos pontos de venda de drogas. Essa disputa se estende do centro da cidade aos bairros da Base, Cadeia Velha, Papouco, Dom Giocondo, até a ladeira do Bola Preta, criando uma teia de violência e instabilidade que afeta toda a sociedade.

Com a proximidade das eleições municipais em 2024, a missão dos candidatos a Prefeito de Rio Branco é clara: é urgente enfrentar esse problema complexo e multifacetado. A solução requer o envolvimento de diversos atores, desde as autoridades locais até a sociedade civil, passando por especialistas em saúde pública, assistência social e segurança. A prioridade deve ser a implementação e aprimoramento das políticas públicas de assistência social, com especial atenção à recuperação de dependentes químicos e à reintegração da população em situação de rua. Além disso, é necessário desenvolver estratégias de segurança que garantam a tranquilidade das áreas urbanas afetadas sem, no entanto, colocar ainda mais essas pessoas à margem da sociedade.

Este é um desafio que não pode ser resolvido por uma única entidade ou por ações isoladas. É um problema que requer uma abordagem coletiva e a compreensão de que, ao cuidar dos mais vulneráveis em nossa sociedade, todos se beneficiarão. O futuro de Rio Branco depende de nossa capacidade de enfrentar esses desafios e construir uma cidade mais justa, segura e inclusiva para todos os seus cidadãos. 

*Advogado e Membro da Comissão da Advocacia Criminal da OAB/AC.