Esse Papo de Cafezinho teve como ponto de encontro a Livraria Sebinho, Cafeteria e Bistrô, na Asa Norte, em Brasília, onde recebi em noite de autógrafos do livro “Vovô Irineu” todos vão se recordar e começar do abc, na última quarta-feira, dia 25, seguidores e dirigentes de grupos consumidores da ayahuasca ou Santo Daime, que interligam ritos tradicionais do Alto Santo, Iceflur, Barquinha e UDV.
Foram muitos apertos de mãos, abraços e entre um gole e outro de um bom café, diálogos sobre a vivência de minha família com o “Vovô Irineu” – uma tradição de 65 anos - e de outros seguidores mais antigos que têm versões contadas na obra, além de diferentes relatos de quem foi prestigiar o evento, que faziam questão de falar como foi o primeiro contato com o chá de origem amazônica.
Brasília é um modelo do desdobramento desse processo de expansão do consumo da ayahuasca ou do Santo Daime pelo Brasil e alguns países do mundo, com o surgimento de novas modalidades de ritos que nos levam desde os movimentos da Nova Era para além das fronteiras, como o curandeirismo peruano e práticas xamânicas modernas originárias de países do primeiro mundo.
Noite de autógrafos em Brasilia foi marcada com a presença de vários seguidores de igrejas que cultuam com a ayhauasca ou Santo Daime, interessados no conhecimento da obra que fala da Doutrina do Daime
Há quem classifique esse movimento como “exportação” ou transição da Ayahuasca da Floresta para os centros urbanos. Beatriz Labate escreveu sobre a reinvenção do uso da ayahuasca. Na verdade, as adaptações feitas dependem da localização geográfica de cada grupo, o perfil de cada padrinho ou madrinha e os objetivos com que os rituais remodelados são praticados com a ingestão do chá. Não há como evitar o surgimento desses pequenos grupos experimentais, assim como os conflitos que acompanham essas dissidências, os processos que ainda provocam traumas à manutenção do modelo ensinado pelo Mestre fundador.
Há uma tensão por um lado daqueles que se insurgem contra as práticas tradicionais existentes e os que evitam o uso da ayahuasca ou Santo Daime com associação de drogas. Entre um diálogo e outro, um cafezinho quente em cada autógrafo, enxergava, nesta lacuna, o interesse pelo conhecimento mais profundo sobre o Daime.
Talvez isso explique os pedidos para ler o livro “Vovô Irineu” de todo o Brasil e até do exterior onde seguidores do Chile, Uruguai, Estados Unidos, Canadá e Glasgow nem vão aguardar a versão em Inglês, solicitaram exemplares desta primeira edição.
Posso afirmar com base nas mensagens que tenho recebido diariamente, a existência de uma ansiedade pela leitura ao modelo arvorado pelo Mestre Irineu, ao que pode aproximar da fonte. Isso me deixa muito feliz.
Daydmar Porto conheceu o Santo Daime com o Mestre Francisco em 1997, no Centro de Cultura Cósmica. Depois de doze anos ela fundou o Céu de Francisco, na cidade satélite do Gama, onde dirigiu trabalhos até 2021. “Hoje firmamos estudos em nossa casa, há três anos. Estou muito feliz de seguir na linha do Daime, o livro Vovô Irineu chega como fonte de inspiração para nossa caminhada”, relatou Daydmar que chegou apressada, quase no final do evento.
Daydmar Porto conheceu o Santo Daime com o Mestre Francisco em 1997, hoje faz estudos sobre a linha do Mestre Irineu em sua residência
Assim como o depoimento de Deydmar, ouvi vários relatos sobre a formação de grupos de estudos com esse objetivo, de uma nova caminhada somente com o Daime. Outro aspecto importante que observei é que, embora divergentes em alguns aspectos, todos imprimem admiração e muito respeito pelo Mestre. Os que foram ao lançamento em Brasília e nos demais estados por onde passei, queriam ouvir histórias, relatos sobre curas, desejavam viver oralmente a rotina do “Vovô Irineu” na relação com seus adeptos e na construção de sua escola espiritual.
Um grupo de adolescentes com os livros nas mãos me emocionou. Elas me contaram que os pais incentivaram a busca pela leitura. Era tudo tão novo e tão gratificante, que nem parei para anotar os nomes após os autógrafos e as fotos. Depois, revendo as imagens registradas pelos irmãos Bruno e Rafael (do CICLU-DF), refleti sobre essa caminhada. Parece que todos veem de longe, de muito longe.
Exemplo disso foi o meu reencontro em São Luiz (MA) com a família do Mestre Irineu na região de Paço do Lumiar, Grande Ilha maranhense. Fundado em 2006, o Centro de Iluminação Cristã Estrela Brilhante Raimundo Irineu Serra (CICEBRIS) se tornou referência para quem deseja conhecer o Daime na região.
Com o desejo de fundamentar a Doutrina criada pelo tio, no estado onde o Mestre Irineu nasceu, Daniel Serra, em 2006, fez um movimento de volta do Acre ao Maranhão. Hoje essa organização desponta como uma baliza na manutenção do bom uso do Daime numa região cercada por muitas tradições. O Matheus Serra, a Maria Serra e dona Otília seguem na manutenção dessa semente boa. Um esforço que nos remete ao trabalho feito pelo Mestre no início da década de 1970, para regulamentação de sua doutrina.
Muitos jovens vem buscando o conhecimento sobre a bebida de origem amazônica, incentivados em sua maioria pelos pais
O desafio é enorme
Ainda em São Luiz, recebi o convite para comer uma carne de sol, uma das especialidades da culinária regional. O jantar foi para conhecer o casal Renato e Dani Norde. Através deles, ampliei a agenda, fui até a cidade de Timon, na divisa entre os estados do Maranhão e Piauí.
Norde é dirigente da Igreja Mestre Irineu, com sedes em Timon (PI) e Cuiabá (MT). Ele me apresentou um trabalho feito com a ajuda de agrônomos, que consiste no desenvolvimento de técnicas sustentáveis de plantação do cipó jagube (banisteriopsis caapi) e da folha chacrona (psychotria viridis). Os estudos buscam saber qual é a melhor condição de cultivo das plantas que produzem o Daime em regiões fora da Amazônia, como o cerrado nordestino bastante castigado pela seca e pelo desmatamento.
O cultivo dessas espécies em regiões semiáridas, montanhosas e frias tem sido uma condição bastante desafiadora. O trabalho do Renato Norde, parte dele às margens do rio Parnaíba – principal manancial da região de fronteira - busca um plano de manejo adequando que auxilie a construção de novos viveiros com reinado da folha e do jagube. É uma contribuição para a sustentabilidade de produção da ayahuasca no Brasil.
Agronomos buscam o manejo adequado da folha chacrona e do cipó jagube, componentes que produzem o Daime. Estudos pela sustentabilidade da ayahuasca na Amazônia
Saindo da fronteira com o Piaui fui para Goiânia, na região Jardim Barcelona, Bela Vista de Goiás, no centro Luz Soberana – Fulus, que tem como dirigente o advogado Claudio Olavo. A noite de autógrafos foi marcada pelo cântico do hinário o Mensageiro, da pioneira Maria Marques Vieira. O evento recebeu visitantes de várias denominações que utilizam o Santo Daime ou a ayahuasca.
A Comunidade presidida pelo Olavo é exemplo vivo do “todos vão se recordar e começar do abc”. Em 2009 ele iniciou esse movimento de aproximação da fonte junto com o Eduardo Assis, do centro União Estrela Guia, em São Paulo. Merece um capítulo à parte. O Luz Soberana em Goiás, preserva atualmente uma área de 40 mil metros quadrados de floresta do Cerrado. A sede dos trabalhos construída no padrão Alto Santo é cercada por um reinado de folha e jagube, com a presença simbólica do Cruzeiro, do nosso Mestre ensinador.
Seguimos fortalecendo esse ambiente saudável que baliza a Doutrina do Daime, fundada pelo “Vovô Irineu”.
Centro Luz Soberana faz trabalhos alinhados a ritos do Alto Santo preservando o Cerrado na região central do Brasil
Jairo Carioca é jornalista, assessor de imprensa e escritor. Colabora semanalmente com o NH.