Eu não sou doida. Não. Vou me calar para que ouçam o abismo de silêncio do corpo quente de uma mulher que se desfaz. Quando chega a hora, o ovo se parte e a ave voa, é o escândalo do parto, explosão íntima da matéria, mutação perpétua da fêmea depois de fecundada pelo macho.
Parto público
Eram 25 dias do primeiro mês de 2022 d.C. quando a menina veio ao mundo se estremecendo toda de delicadeza na calçada. O derradeiro abalo do sino da Catedral se misturou ao dourado do sol sobre a terra depois do primeiro sopro da vida ao pé do muro. Tem sempre um muro que separa os mundos. Antes de receberem os cuidados canônicos do pós-parto, o relógio da praça surrupiou, fez escuro do céu: mãe e filha foram logo sendo julgadas pelos transeuntes nas trevas. Castigo ou milagre? Os transeuntes correram para ver o acontecimento.
Não sei, não sei
- Senta-se no chão, mulher! - disse um homem obtuso. É natural a cria ir para os braços da mãe.
- É bem branquinho, estará morto? - disse outro homem, em tom seco de geladeira.
- Só pode ser louca, que horror, tem problema de saúde mental, meu Deus - disse uma dona no grupo do zap, de repente. E era: sofria de esquizofrenia, órfã, morava na rua. A roupa dela confessava o mesmo espírito inanimado presente em As sete Obras de Misericórdia, de Caravaggio, em que o artista denuncia a miséria da época entre o pano santo que cobriu Jesus, o Cristo.
Vergonha coletiva
A mulher deu à luz a humanidade inteira, a poucos passos da porta selada do hospital, sozinha. Quem seria o pai da criança? Não sei, é o não sei que me guia. O choque do absurdo atrapalhou o trânsito ansiado da rua, mas não impediu que os celulares capturassem o instante único, depois do raio do milagre. Todo mundo viu, eu vi o inominável deitado no chão, vivíssimo. Em pouco tempo, a cena “viralizou” na internet a vergonha coletiva: o bicho mãe desorientado, humilhado, sem som na boca, mouco, olhos de cacimba bem funda e fria, cabelo de besta espantada, você me acredita? Todo mundo olhava tosco, o que viam? Há um tipo de força superior no enovelado da palavra, e enrubesço. É impossível não amar.
Velha história
Louca, eis o mito que nos contaram e ora reproduzimos. É uma velha história que vem de longe, data do berço do patriarcado e do triunfo do capitalismo. As loucas de hoje são as heréticas do século XIII: amantes do diabo, trânsfugas do erotismo e do insólito; são as bruxas do século XV: feiticeiras, magas, endemoniadas. Elas foram torturadas e queimadas vivas em fogueiras santas. Resistimos na luta. A resistência é mais forte do que a força, mas precisamos de força para resistir ao criar uma nova mitologia da mulher arquetípica. As mulheres estão escrevendo a sua própria história, leiam-nas.
Ilustração: Beatriz Bentes (insta: @beatrzbentes)
Nosso corpo é político
É do sumo da loucura que dessacralizaram e transformaram o corpo da mulher em coisa. No entanto, nosso corpo é político. Mas existe a culpa, vivemos acossadas pelo pecado da maça. Libertemo-nos pelo parto, pois todo nascimento é um pouco de esperança. A esperança é um pássaro lançado ao voo, é primavera antecipada, mas não é de se brincar, porque até mesmo na primavera flores murcham.
Dizer falando
Tem coisas que não se pode falar: aborto seguro? Não, “elas abortam escondido para não serem apedrejadas”. Laqueadura? Não, só com a autorização do marido. Maternidade? Traumático romantismo. Mulheres trans? Não neguem a elas o direito à existência, é o que está certo. É tudo tão simples que não se pode dizer, falando a verdade. A verdade não é uma bondade que se conta na esquina. A verdade queima-nos as mãos de tão violenta beleza, e o belo é terrível, mas há uma alegria em tudo isso: a verdade dói. A verdade é que sou uma mulher, tenho direitos, portanto, exijo.
Exijo
Exijo que se cumpram as leis dos homens. Exijo que nunca mais uma criança nasça ao relento. Exijo que o Estado repare os danos pelos maus-tratos à parturiente. Exijo que a criança coma e durma em paz na proteção do colo da mãe. Exijo que ouçam nossas vozes. Exijo nossa libertação e declaro:
Declaro
Eu declaro que todo dia 25 de janeiro será o dia universal do parto humanizado e luta pelos seus direitos à saúde mental e reprodutiva das mulheres. Fica decretado que todo dia 25 de janeiro será primavera antecipada e que não chova, não chova.