Outlander
Não tem tradução para essa palavra no google, algo se perde na tradução, mas é uma gíria para dizer que “a coisa” está fora do espaço-tempo, na órbita do para-sempre ou para-nunca, tanto faz quando se trata da eternidade. Então, vou comentar o segundo episódio da série disponível na Netflix que leva esse nome. Indicação de um amigo PM que, influenciado pelas minhas prosas impensadas, me disse: assisti como se fosse tu. Para meu espanto, era.
Segredos
Toda mulher guarda segredos do tipo que toda mulher tem, mas que não ameaça ninguém. Segredos que não a tornam prisioneira, mas a libertam da prisão. A personagem se chama Claire [se pronuncia Cler]. No primeiro episódio ela está num lugar do século XX, logo depois que a guerra acaba. Volta para casa, para os braços do marido, em lua de mel. Ela lutara como enfermeira do exército e o marido fora um espião que estudou para fazer espionagens. O espião é alguém que entende o que tem dentro da mente de outra pessoa. Tudo se aprende mentido, até mesmo a amar, como diria o Dr. House, em sua série memorável.
Fora do tempo
O tempo é Deus. Cler vai parar no Castelo de Leoch no ano de 1743. Naquele tempo a Escócia passou a ser definitivamente parte da Grã-Bretanha, enquanto Inglaterra e França permaneciam em guerra. Depois de se limpar do conflito da captura e se vestir adequadamente, Cler vai se apresentar ao dono do castelo. Em seu lúgubre escritório, ao lado da porta, tem uma gaiola. Às vezes assisto filmes de época para ver como eram os tapetes, os potes e as mesas do jantar.
Toulouse-Lautrec
Leoch, ao entrar na sala, causa espanto aos olhos de Cler. É que ele sofre de uma doença autossômica recessiva que degenera os ossos e o tecido conjuntivo (Pycnodysostosis), e que passou a se chamar síndrome de Toulouse-Lautrec, em homenagem ao seu portador mais famoso. O rei tinha baixa estatura e as pernas absolutamente tortas. O artista morreu aos 38 anos, mas deixou uma obra impecável sobre a vida boêmia francesa de seu tempo. Além das pinturas, Toulouse também pintava cartazes litográficos.
A vida do artista
Toulouse-Lautrec pertenceu à nobreza; no entanto, só alcançou o auge como artista (de caráter duvidoso) depois que passou a morar em bairro de má fama, entre pessoas igualmente degeneradas. Vi uma exposição do artista no MASP e duvidei do poder da mão de um artista, as prostitutas eram deusas sujas, e os cabarés, o paraíso.
As imagens foram capturadas da internet e a pesquisa sobre a vida do artista se encontra resumida na enciclopédia Wikipédia. O que disse acima foi também uma lembrança de um livro de colação que adquiri na década de 90, mas só fiquei sabendo no MASP que o artista morou nos porões dos cabarés e lá via a nudez das musas.
Essa obra é a imagem da capa do livro que falei.
Essa obra é inumana vista de frente, mesmo sem poder tocá-la é possível sentir a liberdade da moça.
Estupro
Cler abriu um livro que datava de um tempo para ela conhecido apenas de outros livros, museus, pinturas, pessoas, roupas que se vestiam, alguns costumes e até expressões militares. Leoch, ao surpreendê-la nas páginas imensas do livro sobre a mesa, disse-lhe: Nos livros há alguns conhecimentos que não revelam segredos. Ele a interrogava. Em apuros, lembrou do que o marido dissera sobre suportar um interrogatório. “Você deve suportar a verdade tanto quanto for humanamente possível, só alterando detalhes que devem ser mantidos em segredo. Leoch indagou-a sobre o vestido que usava quando chegou no castelo, que mais parecia uma anágua, para aquela época. Ela disse que o capitão Jack Randall tentara estuprá-la. E ele perscrutou: Mas, o capitão tem uma reputação, um homem com autoridade conferida deve ter um bom motivo para querer estuprá-la. Ela, com a delicadeza de um toureiro na arena, disse: existe um bom motivo para um homem estuprar uma mulher?
Equilíbrio
Cler não baixou guarda, e o homem pediu perdão pela grosseria. A fotografia é inominável. Olhando para as colinas, a relva ensopada e os meninos com suas espadas nas mãos. Na luta, não se mata um homem desarmado.
Punição
Naquela época, as mulheres sábias eram consideradas feiticeiras. Cler era uma delas, pois conhecia os segredos para a cura das doenças. Sua arte a salvou da morte. Sua ciência salvou um homem.
Liberdade
Tem um homem, no reino, que defende as mulheres. Ele se oferece, nos julgamentos em público, para ser punido pela desobediência delas, mesmo sem conhecê-las. É um homem ferido, mas não machucado como uma mulher que é exposta aos horrores da opressão do machismo.
Femme
Partilho a seguir o começo de uma história que comecei a escrever (sem final), inspirada num processo criminal que li recentemente. É sobre uma menina que vive a experiência de ser indagada sobre seu vestido e seu jeito de ser.
Essa fotografia é da parte dos olhos sensíveis do artista @marcosvicentti.
Femme
- Todas elas são assim? Gritou, do quarto, lesa de sono, em repressão ao fato de ir à escola.
- Assim como, mocinha? Respondeu a mãe em curiosa represália aos rompantes da filha.
A cidade se iluminava com as caravanas que chegavam para a procissão, misturando circo e fé, carnaval e oração. Tudo acontece de véspera, pensou. Naquele dia estava alegre e o que é a alegria, se não um estado de paz em risos? Iria só naquele dia ao açougue comprar os ossos do caldo do vô, assim pensaria melhor nas coisas da vida, passaria primeiro na casa da Dona Roxinha para saber notícias da menina e depois direto para o açougue, ver o menino azul por alguns instantes, ele era filho do seu João, o açougueiro, diziam pela rua que era lelé da cuca, mas era a pessoa mais magnífica da Vila dos Reis e ninguém sabia. Ela mesma soube depois que prestou atenção às loucuras que o vô figurava para a mãe, que se irritava com aquela amolação quimérica típica da idade extrema de um homem.
Café da manhã
- Calma, mãe, já vou!
Todos os dias era a mesma lenga-lenga. Já arrumou a cama? Escovou os dentes? Aqui em casa não tem ou isso ou aquilo, todo dia é cinza. Pede a benção – “benci mãe!” [maõzinha pra cima mocinha! – a mãe dizia]. O dia começa mesmo é no café da manhã.
Em torno da mesa em madeira laqueada, comiam do pão com reza e disciplina em represália ao demasiado. Pai era áspero como uma pedra bruta. À frente da prole, só levantava depois que o amém soava como o badalar de um sino, dizendo sem falar: todos aos seus deveres! Fizesse o que fizesse, fosse aonde fosse, era com a permissão do pai e mais nada.
Trabalho era uma obrigação cívica para manter a ordem em casa. A obrigação de Rosa era ir ao açougue comprar a carne do dia para fazer o caldo insosso do vô, receitado pelo médico, é que ele tinha aquela doença que enfraquece os miolos do homem de muitas ambições e pouca inteligência, dos que querem receber dos outros mais do que aquilo que dá. Mas esse não era o caso do vô, então por que padeceu daquele mal inumano que eliminou de vez a memória? Vá se saber. Tem coisa que não se revela para não estragar o encante da vida. O fato é que um homem sem consciência é realmente pobre, mas isso também não era o caso do vô, a mentalidade fora compensada com uma vasta imaginação. Nada é superior a mente humana, nem a própria mente.
O que aconteceu depois? Eu conto depois, está escrito à mão em cadernos soltos pela casa.