Uma das táticas - bem sucedidas, por sinal - do bolsonarismo, manifestação brasileira do autoritarismo em franca escalada em direção ao totalitarismo, é a substituição do debate político ou programático pelo debate de costumes, convicções e credo. Trazer, para a arena pública, assuntos que são próprios da esfera da vida privada gera dois efeitos maléficos à sociedade, porém, benéficos para quem promove tal inversão.
O primeiro efeito é que o fato de discutir, na esfera pública, coisas que só deveriam importar a individualidade de cada um ou, na máximo, ao seu círculo de pessoas mais íntimas, gera dissenso e discórdia. Porque quando falamos de costumes, religião, espiritualidade, orientação sexual ou sobre outros assuntos da vida privada não existe certo ou errado: existem apenas preferências, diferenças que, em uma sociedade verdadeiramente democrática, deveriam coexistir e ser respeitadas. Mas, em uma sociedade eminentemente conservadora, marcada pelas distintas formas de preconceito e discriminação, a realidade é outra: as pessoas gostam de julgar e condenar os diferentes por suas diferenças, ainda que o motivo para tal julgamento ou reprimenda não lhes diga respeito.
O segundo efeito é que, ao fazer isso, permite-se desviar o foco das pessoas dos assuntos que de fato interessam à arena pública: a solução para os problemas coletivos da sociedade, tais como a melhoria dos serviços públicos, a geração de empregos, a distribuição de renda, a inclusão social e a redução das desigualdades. Porque falar mal da vida alheia e julgar o próximo acaba sendo mais interessante e mais fácil do que se concentrar, pensar ou opinar sobre assuntos complexos. Esses dão mais trabalho, exigem conhecimento, engajamento e outras condições nem sempre presentes na maior parte dos cidadãos comuns. Porém, está na essência do conceito de cidadania, sem a qual não há democracia plena.
Incluir a pauta de costumes na esfera pública, retirando desta o debate sobre a pauta que lhe é própria é, portanto, uma tática diversionista. Porque promover a discórdia em virtude de debates infrutíferos sobre temas controversos acaba permitindo aos verdadeiros donos do poder desviar a atenção e jogar, pra debaixo do tapete, todo e qualquer desmando sobre suas atuações políticas, tráfico de influências, sobre suas incompetências e, porque não dizer, sobre os sigilos de 100 anos em torno de seus malfeitos.
O bolsonarismo vai além disso. Mais do que promover tal inversão, ele ultrapassa a fronteira do razoável nesse debate, pois consegue transformar a chamada "pauta de costumes" em um verdadeiro "terrorismo moral", recheado de mentiras e fake news sobre aborto, banheiros unissex, pactos com o demônio, abuso sexual de crianças e outras situações falsas disseminadas para chocar e causar medo, ódio e repulsa não só em seus seguidores fanáticos, mas, sobretudo, no eleitor indeciso que se deixa facilmente emocionar por esse tipo de narrativa. Acordemos, pois, para esse tipo de estratégia, maniqueísta e suja, típica do bolsonarismo e de sua patuleia.
*Daniel Zen é doutorando em Direito (UnB). Mestre em Direito, com concentração na área de Relações Internacionais (UFSC). Professor Assistente-A, Nível 1, do Centro de Ciências Jurídicas e Sociais Aplicadas (CCJSA) da Universidade Federal do Acre (UFAC). Contrabaixista da banda de rock Filomedusa. Colunista do portal de jornalismo colaborativo Mídia Ninja. E-mail: Este endereço de email está sendo protegido de spambots. Você precisa do JavaScript ativado para vê-lo..