As variações no índice da bolsa de valores e na taxa de câmbio, ocorridas nas últimas semanas, em virtude de declarações do presidente eleito, em que sinaliza a sua prioridade para com o que ele denomina de “responsabilidade social”, em suposta oposição a uma desejável “responsabilidade fiscal” são, na verdade, expressões do velho jogo de interesses de quem quer abocanhar a maior fatia do orçamento público, sobretudo do “superávit primário” utilizado, via de regra, para remunerar o chamado "serviço da dívida”: juros incidentes sobre o valor nominal dos títulos da dívida pública expedidos pelo governo, negociáveis no mercado de capitais.
Os efeitos imediatos de tais variações, como a suposta e noticiada queda no valor de mercado das empresas estatais e queda no valor das ações de empresas privadas são, na verdade, meras oscilações no valor de parte de seus ativos variáveis: papéis igualmente negociáveis na bolsa de valores. Tal “desvalorização” não se dá, por exemplo, em relação ao valor real ou venal dos demais ativos fixos destas mesmas empresas. Esse movimento pendular, de “sobe-desce, desce-sobre” no valor de algumas das ações que compõem seus respectivos portfólios é fruto da especulação convertida em pressão chantagista da tal entidade chamada “mercado” (leia-se “mercado financeiro especulativo”) para que o governo recém eleito - e que ainda nem assumiu - adote a sua pauta integralmente, o que só favorece a eles próprios, em detrimento do povo e do setor produtivo da economia.
Essas tais “oscilações” no valor das ações só “prejudicam” (em tese, porque também podem favorecê-los, em um curto espaço de tempo) a quem vive, proritariamente, de juros e da renda do capital: de aluguéis, de aplicações no mercado financeiro, de comprar e vender ações na bolsa de valores, ou seja, de quem vive de especulação (nada contra) e não do trabalho direto, da produção real. Não é o caso de quem é trabalhador assalariado do setor privado, muito menos de servidores públicos que, ganhem mais ou menos, vivem de seus salários.
É certo que parte desses recursos movimentados no mercado financeiro (na bolsa de valores) acaba se direcionando, na forma de investimentos reais, para a indústria, o comércio, a agropecuária, como bem sinalizaram os economistas Armínio Fraga, Edmar Bacha e Pedro Malan, em respeitosa carta aberta direcionada ao presidente eleito. Mas, em que proporção? A que custo?
Esse movimento de chantagens e pressões especulativas não interessa ao povo pobre, desempregado, subempregado ou “uberizado”, que aguarda, com esperança, que o novo governo destine uma fatia considerável do orçamento para a execução de políticas públicas que promovam - além de crescimento econômico - geração de emprego, distribuição de renda, inclusão social e redução das desigualdades, sociais e regionais. E, de preferência, com a erradicação da miséria e da fome.
Para implementar esse tipo de agenda econômica - inclusiva e distributiva - é necessário promover a retomada da política de aumento real (acima da inflação) do salário mínimo; a ampliação dos programas de transferência de renda; um maior acesso ao crédito; e a ampliação do investimento público, sobretudo em Ciência, Tecnologia e Inovação (CT&I) e em melhoria na infra-estrutura (comunicação, energia e transportes) do país, para que nossa indústria e comércio consigam oferecer produtos e serviços nacionais mais competitivos em relação aos similares externos.
É necessário, também, adotar uma política de menores juros reais sobre a dívida pública, redirecionado parte da fração de recursos públicos destinados a isso para investimentos em melhores serviços de Educação e Saúde, de modo a permitir a ampliação indireta do poder de compra com menor aumento nominal de salários.
Além de maior eficiência, eficácia e efetividade nos gastos públicos, só se consegue atingir tais objetivos com uma reforma tributária de verdade, com a adoção de um sistema progressivo de tributação: menos impostos sobre o consumo, produção e folha de pagamento e mais impostos sobre a renda e o patrimônio. Quem ganha e tem mais, paga mais. Quem ganha e possui menos, paga menos. Isso inclui uma maior taxação sobre heranças e a regulamentação do imposto sobre grandes fortunas.
Tudo isso implica, sim, em alterar o chamado balanço fiscal, a regra do teto de gastos e a chamada “regra de ouro”. Mas, isso já foi feito antes, recentemente, durante o atual governo e de forma bem mais drástica, com contornos de crime eleitoral e de pedaladas fiscais. E o mercado nem “molgou”, quanto mais sucumbiu. Porque é possível fazer tudo isso sem prejudicar ou alterar, significativamente, as variáveis macroeconômicas, tais como a política de controle da taxa de inflação, da taxa variável de juros e do câmbio flutuante. Também é possível obter crescimento e desenvolvimento econômico com um balanço orçamentário e fiscal equilibrado, mantendo a balança comercial superavitária e uma reserva internacional em montantes saudáveis.
Responsabilidade fiscal não é incompatível com responsabilidade social. E propor acabar com a fome não deveria "ofender", nem mesmo "assustar" o mercado. Afinal, não se viu tamanha turbulência ou qualquer espécie de constrangimento quando da aprovação da "PEC da Compra de Votos", que majorou o valor de uns e instituiu o valor de outros benefícios sociais, em ano de eleição, contrariando proibição constante na própria Constituição Federal e contribuindo para arrombar o tão adorado teto de gastos em R$ 795 bilhões durante os 4 anos do atual governo. Na ocasião, não se viu o "mercado" tão "nervoso" quanto agora.
O que não dá é pra virar refém do capital financeiro e especulativo, a ponto de ter que lhe pedir licença para tomar medidas macroeconômicas ou se deixar levar pelo tipo de manchete sensacionalista que dá conta de uma súbita queda na bolsa ou do crescimento, igualmente súbito, na taxa de câmbio. Isso daí é chantagem barata. Besta é quem cai.
*Daniel Zen é doutorando em Direito pela UnB e Mestre em Direito, com concentração na área de Relações Internacionais, pela UFSC. Professor do Centro de Ciências Jurídicas e Sociais Aplicadas (CCJSA) da Universidade Federal do Acre (UFAC). Contrabaixista da banda de rock Filomedusa. Colunista do portal de jornalismo colaborativo Mídia Ninja e do site Notícias da Hora. E-mail: Este endereço de email está sendo protegido de spambots. Você precisa do JavaScript ativado para vê-lo..