RIO — A China omitiu mais de metade dos casos de Covid-19 dos quais tinha conhecimento no início da pandemia, mostram documentos do Centro de Prevenção e Controle de Doenças da província de Hubei, cuja capital Wuhan foi o marco zero do novo coronavírus. Entregues à CNN por um informante anônimo, os dados até então desconhecidos dão pela primeira vez uma dimensão da resposta inicial das autoridades locais à crise.
Em 10 de fevereiro, a China anunciava oficialmente 2.478 novos casos confirmados. No total, mais de 40 mil pessoas haviam sido infectadas — menos de 400 delas fora do território chinês. Um relatório com a marcação “documento interno, por favor mantenha a confidencialidade”, no entanto, indicava que 5.918 pessoas — mais que o dobro da cifra oficial — haviam sido diagnosticadas naquele mesmo dia na província de Hubei.
Os casos eram divididos em três categorias: se o paciente havia tido contato com outros casos confirmados, diagnósticos realizados por exames de imagens e, por fim, testes PCR positivos. Apenas no meio de fevereiro, os diagnósticos confirmados por tomografias ou raios X foram incorporados aos “casos confirmados”.
Dados do início de março, por sua vez, indicavam que o tempo médio entre a aparição dos primeiros sintomas e a confirmação dos diagnósticos era de 23,3 dias — intervalo que dificultaria o monitoramento e o combate da doença. Enquanto o governo relatava publicamente 2.986 mortes entre o início da pandemia e o dia 7 daquele mês, o número interno era 3.456. Os casos diários divulgados ao público na ocasião foram 83, enquanto os registrados oficialmente foram 115.
Em paralelo, uma auditoria dos testes disponíveis mostrou sua ineficiência para detectar a doença no início de janeiro — exames retroativos indicaram que resultados negativos eram, na verdade, positivos para o coronavírus. Diante disso, criou-se a categoria de diagnósticos realizados exclusivamente por exames de imagem. Equipamentos de proteção pessoal, também constatou a investigação, estavam em falta para a equipe médica.
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Não se sabe se o governo central teve acesso às 117 páginas de documentos que vão de outubro de 2019 a abril de 2020, entregues ao canal por uma fonte anônima, um funcionário do sistema de saúde chinês que disse ser “um patriota motivado a expor a verdade que foi censurada”. Os relatórios, que foram verificados por especialistas independentes, revelam uma série de inconsistências com a versão oficial. A Chancelaria chinesa, o Centro de Controle e Prevenção de Doenças (CDC) de Hubei e a Comissão Nacional de Saúde da China não responderam aos pedidos de comentário da CNN.
Segundo analistas ouvidos pela CNN, as discrepâncias provavelmente são uma soma do instinto de ocultar a gravidade da situação e da pouca eficiência inicial do sistema que contabilizava os casos. Funcionários do CDC local, segundo o diretor do programa de estudos chineses da Universidade Johns Hopkins, por sua vez, podem ter sido motivados a minimizar a seriedade para esconder a falta de financiamento e preparação das autoridades provinciais, explicitadas em documentos de 2019.
Nos meses seguintes, funcionários responsáveis pelo controle dos números foram demitidos e os sistemas de contabilização foram otimizados: em 7 de março, 80% dos casos confirmados eram registrados no mesmo dia. Pequim, por sua vez, afirma que sempre publicou informações referentes à pandemia de maneira “pontual, aberta e transparente”.
Enquanto o mundo enfrenta dificuldades para conter a pandemia, a mobilização do governo central, que concentrou todos os seus esforços coletivos para conter a doença, deu certo: a população vive o "novo normal", limitado pelas restrições impostas pelo cenário global. Seu sucesso no controle interno é, agora, usado pelo regime para fortalecer sua imagem de competência, apesar das falhas iniciais que vêm à tona.
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Surto de influenza Os relatórios também revelam que desde o início de dezembro de 2019 Hubei lidava com um surto de gripe, com 20 vezes mais casos da doença que no mesmo período do ano anterior. As cidades mais afetadas eram Yichang, Xianning e Wuhan. O paciente zero da Covid-19, pelo que se sabe até este momento, foi diagnosticado há exatamente um ano, em 1º de dezembro de 2019.
Não há qualquer elo evidente entre as duas crises sanitárias mas, segundo especialistas ouvidos pelo canal americano, a semelhança dos sintomas pode ter dificultado uma resposta mais contundente.
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Os documentos não provam que houve um complô para não divulgar informações sobre a doença, como acusa o governo dos Estados Unidos e seus aliados. Ainda assim, seu vazamento vem em meio às pressões para que a China coopere com a Organização Mundial de Saúde (OMS) em sua investigação sobre a origem da pandemia, que já matou mais de 1,4 milhão de pessoas. O acesso da OMS a documentos, no entanto, tem sido limitado até o momento.
— Está claro que eles cometeram erros, e não apenas erros que se comete quando se está lidando com um vírus novo, mas erros burocráticos e com motivações políticas — disse à CNN Yanzhong Huang, pesquisador de saúde global no Conselho de Relações Estrangeiras. — Mesmo que tivessem sido 100% transparentes, isto não teria impedido o governo Trump de minimizar a seriedade da crise, mas provavelmente teria impedido que se tornasse uma pandemia.