Embora não seja de imediata compreensão, há uma forte conexão entre as atividades ilegais na fronteira e a ação de organizações criminosas no meio urbano de cidades amazônicas como Rio Branco.
As mortes confirmadas de Dom Phillips e Bruno Pereira, no Vale do Javari, trouxeram à tona estas preocupações, que já são discutidas no movimento indígena do Acre há pelo menos cinco anos. A tragédia que se abateu sobre o jornalista e o indigenista expôs as ligações entre o narcotráfico e os crimes ambientais.
Francisco Piyãko, liderança indígena e ex-assessor da presidência da Funai, em entrevista ao site UOL, falou ao jornalista Carlos Madeiro que o ocorrido no Vale do Javari, embora tenha recebido atenção especial da imprensa, não é um caso isolado.
Piyãko foi um dos primeiros líderes indígenas a denunciar as conexões entre o crime organizado e o aumento da insegurança na fronteira. “Não é uma questão localizada. Nós temos uma região de fronteira que sofre muita pressão. E temos uma organização do crime bem maior que envolve várias frentes: narcotráfico, madeireiros, mineradores... Enfim, é uma organização criminosa muito grande", disse.
Na percepção de pesquisadores, a redução na fiscalização ambiental e em terras indígenas por órgãos federais na Amazônia, promovida pelo atual governo, acabou por facilitar que organizações criminosas ligadas ao narcotráfico se aliassem a outros grupos de atuação ilegal para ampliar seus lucros na região. Com isso, o crime organizado tem usado cada vez mais os rios que atravessam terras indígenas sem qualquer fiscalização.
“O crime organizado conseguiu compreender esse cenário de fragilidade e promoveu articulações multi-institucionais em atuações que envolvem tráfico de drogas, armas, pesca, garimpo ilegal, biopirataria, que torna o crime muito mais rentável e eficaz com fluidez", afirma Aiala Couto, professor e pesquisador da Universidade Estadual do Pará.
Aiala, que integra o Fórum Brasileiro de Segurança Pública, vê uma relação entre o desmonte dos órgãos ambientais e indígenas. O loteamento de cargos no ICMBio, Ibama e Funai seria um dos fatores de aumento dessa fragilidade já existente nas regiões de fronteira. A Funai, por exemplo, teve seu efetivo reduzido pela metade nos últimos nove anos.
“Nos últimos três anos não tivemos uma visita da Funai à nossa terra indígena. São poucos servidores para atender uma área muito grande. Temos três servidores onde antes havia 15. Isso demonstra o tamanho da fragilidade das instituições que deveriam estar junto com as comunidades indígenas”, afirma Piyãko.
Para o líder, a maneira com que o atual governo vem tratando as comunidades indígenas contribui para essa fragilidade. “Não apenas mudou a maneira de ver as comunidades como diminuiu a capacidade de atuação junto a elas. Diminuiu o aporte financeiro e o corpo técnico para trabalhar. Isso traz a sensação de que estamos sozinhos para cuidar da fronteira”.
Povos Indígenas e novas tecnologia podem contribuir com a vigilância
Com a dificuldade em manter servidores em número suficiente para a vigilância sobre um território tão vasto, os povos indígenas localizados na fronteira podem ser importantes aliados da segurança do país.
Não é de hoje que as questões da fronteira afetam diretamente o povo Ashaninka. Os Ashaninka já tiveram de lidar com invasores madeireiros peruanos em suas terras e conheceram de perto as conexões com o tráfico de drogas entre Brasil e Peru.
Novas tecnologias vêm sendo empregadas com sucesso pelos povos indígena na vigilância de seus territórios. GPS, Drones e IA são algumas das ferramentas com a qual agentes indígenas vêm se capacitando para fortalecer a vigilância territorial.
A iniciativa vem de encontro a um ponto de vista defendido por Francisco Piyãko, de união dos saberes da floresta com os acadêmicos. “Temos que investir em Ciência e Tecnologia. Temos dois mundos que precisam conversar: os conhecimentos e saberes tradicionais com a ciência e a tecnologia modernas. Se houver esse diálogo, a gente consegue compartilhar coisas importantes daqui da floresta com o restante do mundo, assim como o mundo também tem coisas que são importantes para nós aqui na floresta. Acho que esse diálogo é possível desde que a gente tenha essa capacidade de ouvir o outro. Assim a gente avança em todos os sentidos”, explica.
Ainda assim, mesmo que um dia os povos indígenas possam ser percebidos como aliados na segurança de fronteira, isso não substitui a necessidade de uma maior presença do Estado na região. “Queremos a presença do Estado junto à sociedade. O estado precisa cumprir o seu papel. Nós temos que acreditar no estado, chamá-lo para cumprir o seu papel, porque nós não vamos fazer o enfrentamento ao crime organizado, nós vamos perder, não estamos preparados nem armados para isso. Estamos muito preocupados com essa ausência do Estado, ele tem que assumir essa responsabilidade de fazer a proteção tanto seja urbana como da floresta. E não se faz proteção só com repressão. É preciso o diálogo com a sociedade para mostrar o quanto é importante ela estar organizada”, concluiu.