Uma das mais bem-sucedidas compositoras do pop deixa obra imortal. Luta contra doença durava 2 anos
O sonho de Rita Lee era ser imortal, com saúde para gozar no final – mas, se por acaso morresse do coração, isso era apenas um sinal de que tinha amado demais. De qualquer forma, ela garantia: enquanto estivesse viva e cheia de graça, talvez ainda fizesse um monte de gente feliz. E, de fato, fez milhões de pessoas felizes, ao longo de uma vida abreviada aos 75 anos, neste terça-feira. Rainha do rock brasileiro, a mais debochada das feministas do país, uma das mais bem-sucedidas compositoras do pop em português, defensora de todas as liberdades e voz que não se limitou a estilos ou gerações, Rita Lee deixa biografia e obra, estas sim, imortais.
Nascida na véspera de Ano-Novo de 1948, em São Paulo, em uma família de descendentes de imigrantes norte-americanos e italianos, Rita Lee Jones cresceu no bairro da Vila Mariana, onde viveu até o nascimento de seu primeiro filho, Beto. Durante a infância, teve aulas com a pianista clássica Magdalena Tagliaferro. Enquanto isso, ouvia o rock de Elvis Presley, Neil Sedaka, Beatles e Rolling Stones e as vozes brasileiríssimas de Cauby Peixoto, Angela Maria, João Gilberto e Emilinha Borba.
Na adolescência, nasceram o interesse de Rita pela música, suas primeiras canções e o primeiro grupo, só de garotas: as Teenage Singers, fundado em 1963. No ano seguinte, elas conheceram o trio masculino Wooden Faces, e os dois se juntariam para formar o Six Sided Rockers, mais tarde renomeado de O’Seis. Em 66, o sexteto gravaria um compacto com as músicas “Apocalipse” e “O suicida”. Com a saída de três integrantes, sobraram Rita e os irmãos Arnaldo Baptista e Sérgio Dias. Eles partiram então para formar um novo grupo, Os Bruxos, que, por sugestão do cantor e ídolo da jovem guarda Ronnie Von, passou a se chamar Os Mutantes.
Em 1967, a banda despontou no cenário ao acompanhar o baiano Gilberto Gil no III Festival de Música Popular Brasileira, da TV Record, na canção “Domingo no parque”. Em 68, já bem integrado ao movimento tropicalista de Gil e Caetano Veloso, Os Mutantes lançaram seu primeiro LP, uma explosão de criatividade que décadas mais tarde seria reconhecido como um dos maiores discos da era psicodélica. Cantora da banda e também compositora (junto com os irmãos Dias Baptista), Rita fez das suas primeiras traquinagens ao caracterizar-se de noiva (com um vestido emprestado pela atriz Leila Diniz do figurino da novela “O Sheik de Agadir”) para defender com os Mutantes a canção “Caminhante noturno” no Festival Internacional da Canção, no Maracanãzinho.
Depois de “Mutantes” (1969), “A Divina Comédia ou Ando Meio Desligado” (1970), “Jardim Elétrico” (1971) e “Mutantes e seus Cometas no País dos Baurets” (1972), discos que fizeram dos Mutantes a grande banda do rock brasileiro da sua geração, Rita Lee foi expulsa da banda por Arnaldo Baptista, àquela altura seu ex-marido. Com dois LPs solo na bagagem (“Build up”, de 1970; e “Hoje é o primeiro dia do resto da sua vida”, de 1972, que era para ter sido dos Mutantes), ela não se fez de rogada: formou com a amiga Lúcia Turnbull a dupla de folk-rock As Cilibrinas do Éden e depois o seu próprio grupo, o Tutti Frutti, com o qual enfim chegaria ao sucesso a bordo do LP “Fruto proibido” (1975), dos hits “Agora só falta você”, “Esse tal de roque enrow” e a balada (que muitos acreditaram autobiográfica) “Ovelha negra”. Nascia ali a Rainha do Rock Brasileiro.
Nessa época, porém, Rita começou a viver a paixão avassaladora pelo guitarrista Roberto de Carvalho (que lhe fora apresentado pelo amigo Ney Matogrosso) e com ele iniciou uma parceria musical e amorosa de sucesso que seguiu até o fim da vida e resultou no nascimento de Beto Lee (em 1977), João (1979) e Antônio (1981). Em 1978, Rita lançou o último LP com o Tutti Frutti, “Babilônia”, dos sucessos “Jardins da Babilônia”, “Agora é moda” e “Eu & meu gato”. No ano seguinte, só com Roberto, ela iniciou uma sequência de LPs de caráter mais pop e menos rock, dançantes e românticos, que a transformariam numa das cantoras mais populares do Brasil, com hits do calibre de “Mania de você”, “Lança perfume”, “Doce vampiro”, “Chega mais”, “Baila comigo”, “Saúde”, “Flagra” e “Desculpe o auê”.
Mas nem só de pop e rock foi feita a trajetória musical de Rita Lee. Em 1980, ela cantou “Jou jou balangandãs”, de Lamartine Babo, com João Gilberto em um especial de TV dedicado ao mestre da bossa – em 1991, ela lançou o LP acústico “Rita Lee em bossa’n’roll” e, 10 anos depois, “Aqui, ali, em qualquer lugar”, disco em que recriou canções dos Beatles no idioma musical de João & Tom. Referência para toda uma geração de roqueiros que surgiu no Brasil a partir dos anos 1980, Rita seguiu lançando LPs até 2012 (“Reza”) e não limitou suas atuações à música: teve o programa “TVleezaão” na MTV, interpretou o colega Raul Seixas no curta-metragem “Tanta estrela por aí” e entre 2002 e 2003 fez parte do time de apresentadoras do programa de TV “Saia justa”.
Episódios duros também marcaram a vida de Rita Lee. Em 1976, grávida de Beto, ela foi presa em casa, na Vila Madalena, pela polícia da ditadura militar, por porte de maconha. Na cadeia, Rita foi visitada pela cantora Elis Regina – desafeto dos roqueiros nos tempos do Tropicalismo – que lhe prestou total solidariedade. Depois da sentença, ela teve que passar um ano em prisão domiciliar. Outro entrevero com a polícia foi em 2012, quando Rita foi presa durante um show seu, em Aracaju, por ter xingado policiais que investiram contra o público. Igualmente difícil foi o ano de 1996, no qual, sob o efeito de barbitúricos, sofreu uma queda da varanda no segundo andar de seu sítio, esfacelando seu côndilo maxilar e tendo que passar por uma cirurgia para colocação de pinos de titânio. Dez anos depois, Rita diria ter conseguido controlar a dependência química.
Escritora de livros infantis, do ratinho Dr. Alex, em 2016, a cantora lançou “Rita Lee: uma autobiografia”, resultado de um mergulho na sua memória “já queimada pelos incêndios existenciais que eu mesma ateei”, como brincava ela. “A ideia de ir escrevendo minha vida foi sem pressão de nada nem de ninguém. Com o tempo, a coisa foi se transformando numa verdadeira autoterapia onde descrevo impressões boas e más com distanciamento e bom humor”, disse Rita, já então aposentada dos palcos, que no livro revelou ter sido estuprada quando criança com uma chave de fenda por um técnico de máquinas de costura que visitara sua casa.
Nos últimos anos, Rita Lee assumiu os cabelos brancos e a figura de avó (da pequena Ziza) e de mãe (de um monte de animais de estimação em seu sítio), mas manteve sua voz ativa – e sempre irônica, ferina e histriônica – no Twitter e no Instagram. Em maio de 2021, ao realizar um exame de saúde de rotina, Rita foi diagnosticada com um tumor primário no pulmão esquerdo. Reservada, pelas razões de saúde, ela não pôde participar em outubro do mesmo ano da abertura da exposição em homenagem aos seus 50 anos de carreira no Museu da Imagem e do Som de São Paulo.
Em abril de 2022, Rita Lee compartilhou a notícia de que estava curada do câncer. Mesmo assim, a artista preferiu manter-se reclusa, por prudência. Na época, o primogênito do casal, Beto Lee conversou com O GLOBO e falou sobre o tratamento da mãe: "Foi uma estrada bem esburacada, mas ela conseguiu atravessar."