“Oi, Vitória. Boa noite, capixabas”. A inesquecível saudação de Paul McCartney na noite de 10 de novembro de 2014 materializava algo até então surreal. Um dos maiores artistas da história, um ex-Beatle, apresentaria clássicos no inacabado Estádio Kleber Andrade, em Cariacica. Mas tão surpreendente quanto o espetáculo foi quem financiou a festa. Nem o astro nem os mais de 30 mil espectadores sabiam que o cachê milionário do artista foi pago com o dinheiro sujo da Telexfree, a maior pirâmide financeira do mundo.
Por trás do evento histórico há indícios de uma trama, coordenada pelos chefões do golpe bilionário, para lavar dinheiro acumulado às custas de vítimas em mais de 100 países e mantido em contas de laranjas. As informações são apuradas por A Gazeta desde 2014 e recentemente ganharam consistência suficiente para serem publicadas.
As descobertas são baseadas em documentos públicos e em entrevistas que comprovam a ligação com o show. Também existem investigações sigilosas no Ministério Público Federal (MPF), que disse não comentar apurações em andamento.
OS CHEFÕES DO GOLPE
Carlos Costa e Carlos Wanzeler, idealizadores da pirâmide gestada em Vitória, foram os responsáveis por viabilizar a turnê Out There! no Espírito Santo. A participação de ambos como financiadores foi confirmada pelo produtor local do evento Flávio Salles. “Eu precisava de investidor para shows com valores expressivos, e procurei por eles”, afirmou o empresário.
"Eu precisava de investidor para shows com valores expressivos, e procurei por eles (Carlos Costa e Carlos Wanzeler)"
A relação de Salles com os donos da Telexfree começou em 2012 quando eles alugaram um espaço, em Vitória, onde o empresário do ramo de eventos era diretor. No local, a organização fez uma festa para o seu séquito de divulgadores, como os clientes do esquema eram chamados.
Foi por causa dessa aproximação comercial que Salles convidou Wanzeler e Costa para investirem em shows. Só que o interesse dos líderes da pirâmide esbarrava em um problema. A Justiça paralisou as atividades da Telexfree, bloqueando suas contas e dos sócios antes de julho de 2014, quando começaram as negociações para a vinda de Paul.
Advogado da Telexfree nega lavagem de dinheiro em show de Paul
Portanto, Costa e Wanzeler não poderiam investir no show por razões concretas. Eles ficaram ricos com o golpe, mas quando o ex-Beatle chegou em Vitória, os dois já eram suspeitos de crimes financeiros e não podiam movimentar a fortuna que acumularam.
Para autoridades brasileiras e americanas a Telexfree, que foi criada no Espírito Santo, não é uma mera pirâmide financeira. São apontadas fraudes como evasão de divisas, lavagem de dinheiro, manipulação de câmbio e venda de contratos coletivos de investimentos.
O cachê de Paul foi pago por Renato Alves, um dos principais líderes da Telexfree. A informação é do advogado Rafael Lima, que representa Alves, Wanzeler e Costa. “Ele quis fazer um investimento particular”, diz, ao negar irregularidades, como lavagem de dinheiro. Ocorre que, segundo o produtor Flávio Salles, as tratativas do show foram feitas com os donos da Telexfree na residência de Costa, na Praia da Costa, em Vila Velha.
Salles diz desconhecer quem pagou o ex-Beatle. “Eu passei a conta para eles (Wanzeler e Costa). No meu entendimento, o dinheiro tinha saído da conta deles”, explica Salles sobre o cachê do artista, acrescentando que os demais custos do show foram cobertos pela receita da venda dos ingressos.
Foram pagos aproximadamente R$ 8 milhões somente de cachê. Ao todo, estima-se que ao menos R$ 15 milhões tenham sido empregados para concretizar a festa. Os números oficiais não são divulgados.
Renato Alves, de São Paulo, é apontado pelo MPF como um dos principais laranjas de Costa e Wanzeler. Em ações penais, ele é acusado de ocultar e de lavar dinheiro para os chefões.
DINHEIRO NO COLCHÃO
Alves não é a única ligação entre o show e a Telexfree. Outro elo é Cleber Renê Rizério Rocha, ex-funcionário de Wanzeler. Por exigência dos chefões da pirâmide, ele foi transformado em sócio de Flávio Salles na Capixaba Eventos. Foi essa empresa que assinou contrato para a vinda do Paul McCartney com a Planmusic, produtora brasileira da turnê.
Rocha não tinha expertise em produções artísticas nem desempenhou papel relevante no negócio. Tornou-se dono de 99% da empresa, mas para o público e para o mercado, Flávio Salles, que tinha 1% da firma, era o único proprietário. “Na negociação com o investidor aconteceu essa colocação de uma pessoa na sociedade que, se sentar aqui, eu nem sei quem é (...) Eu aceitei”, disse Salles.
As mudanças no quadro societário da Capixaba Eventos foram assinadas pelo mesmo contador da Telexfree, João Cláudio Pereira. “O Cleber foi no escritório com o Carlos, o Wanzeler e o Flávio… e fizeram a empresa”, contou Pereira, que ainda confirmou que a Capixaba Eventos viabilizou a vinda de Paul McCartney.
Em 2017, Cleber foi preso em Massachusetts, nos Estados Unidos, com US$ 2,2 milhões em uma mala e levou as autoridades norte-americanas a um colchão sob o qual estavam escondidos US$ 17 milhões dos cabeças da pirâmide.
Documentos do governo dos Estados Unidos confirmam Cleber como alguém que desfrutava da confiança de Wanzeler. Em depoimento às autoridades americanas ele confirmou ter sido enviado a Boston para guardar e transferir os milhões de dólares. Segundo a Justiça dos EUA, a quantia seria lavada em Hong Kong antes de ser enviada ao Brasil.
DIFICULDADES DO SHOW
A venda de ingressos para o show não transcorreu como os empresários previam. A bilheteria não estourou e um novo lote foi colocado à venda na semana da apresentação com preços mais acessíveis para universitários. Mesmo assim, uma considerável carga de ingressos foi distribuída como cortesia.
Essa distribuição chamou a atenção da Promotoria Cível de Cariacica, que em relatório de março de 2015 disse suspeitar de sonegação e lavagem de dinheiro. O órgão constatou que foram vendidos 23.704 ingressos, muito abaixo dos 38 mil lugares liberados pelo Corpo de Bombeiros e menor do que os 33 mil previstos pelos organizadores. A venda de bilhetes, segundo a Promotoria, rendeu R$ 3,2 milhões abaixo dos R$ 12 milhões inicialmente previstos como custo total.
A investigação inicial de Cariacica foi transferida para o Grupo de Atuação Especial de Combate ao Crime Organizado (Gaeco), do Ministério Público do Espírito Santo. O caso acabou sendo encaminhado para o MPF. Nos dois órgãos ela tramita em sigilo.
No mercado de eventos, a cortesia pode ser usada para mascarar a receita com as vendas dos bilhetes, produzindo uma espécie de caixa 2 e blindando parte da arrecadação real das garras do Fisco.
Em casos de lavagem de dinheiro, nem sempre a recuperação integral dos valores investidos é o objetivo de quem comete o crime. Como a verba enviada para ser lavada é totalmente ilícita, qualquer parcela do montante que voltar limpo pode significar vantagem para o criminoso.
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