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POLÍCIA

Homem negro é espancado e morto por segurança e policial em Carrefour de Porto Alegre

Homem negro é espancado e morto por segurança e policial em Carrefour de Porto Alegre

João Alberto Silveira Freitas tinha 40 anos; dois suspeitos foram presos em flagrante e responderão por homicídio triplamente qualificado

Um homem negro foi espancado e morto por dois homens brancos em uma unidade do supermercado Carrefour no bairro Passo D'Areia, na zona norte de Porto Alegre, no Rio Grande do Sul, na noite de quinta-feira, 19, véspera do Dia da Consciência Negra. Um dos agressores era segurança do local e o outro, um policial militar temporário. A vítima, João Alberto Silveira Freitas, tinha 40 anos.

A Polícia Civil do Estado investiga o crime. Os dois homens foram presos em flagrante. O segurança permanece no Palácio da Polícia de Porto Alegre, enquanto o policial foi encaminhado para um presídio da Brigada Militar (BM). Uma manifestação em frente ao supermercado está prevista para as 18 horas desta sexta-feira, 20.

Ao 'Estadão', João Batista Rodrigues Freitas, de 65 anos, lamentou a morte de seu filho. "Nós esperamos por Justiça. As únicas coisas que podemos esperar é por Deus e pela Justiça. Não há mais o que fazer. Meu filho não vai mais voltar", disse. 

À reportagem, o pai descreveu a vítima como um homem tranquilo. "Eles (Freitas e a esposa) frequentavam o mercado quase todos os dias. Ele até me incentivou a fazer um cartão do mercado."

O sepultamento está marcado para as 16 horas desta sexta-feira, 20, no Cemitério São João, no IAPI, também na zona norte da capital do Rio Grande do Sul. O Dia da Consciência Negra não é feriado no Rio Grande do Sul.

Em nota, o Carrefour disse que considerou a morte "brutal" e disse que "adotará as medidas cabíveis para responsabilizar os envolvidos". Afirmou também que vai romper o contrato com a empresa responsável pelos seguranças e que o funcionário que estava no comando da loja durante o crime "será desligado". O grupo disse ainda que a loja será fechada em respeito à vítima e que dará o "suporte necessário" à família da vítima (leia mais abaixo).

Em vídeo nas redes sociais, o governador gaúcho, Eduardo Leite (PSDB), disse que o caso deixa a todos "indignados" pelo "excesso de violência que levou à morte de um cidadão, negro". "Todas as circunstância em que esse crime aconteceu estão sendo apuradas para que sejam punidos os responsáveis. Os inquéritos policiais estão sendo levados adiante, com muito rigor", acrescentou. 

Na mesma gravação, a chefe de Polícia do Estado do Rio Grande do Sul, delegada Nadine Anflor, diz que os dois homens gravados nas agressões responderão a homicídio triplamente qualificado. "Por asfixia,  por impossibilidade de resistência da vítima. As imagens são muito chocantes", comentou. Ela também se refere ao caso como de racismo. "A Polícia Civil hoje dá uma resposta a essa intolerância que aconteceu ontem."

Comandante da Brigada Militar, Rodrigo Mohr Picon, destacou que um policial militar temporário (função exercida por um dos agressores) somente pode realizar funções administrativas e não participativa de policiamento nas ruas. "Ele deve ser retirado da corporação e responder civilmente pelo crime."

Hoje é o #DiadaConsciênciaNegra. Infelizmente, nesta data em que deveríamos celebrar políticas públicas e avanços na luta por igualdade racial, deparamos com cenas que nos deixam indignados pelo excesso de violência que levou à morte de um cidadão negro. undefined — Eduardo Leite (@EduardoLeite_) November 20, 2020

Vídeos compartilhados nas redes sociais mostram parte das agressões e o momento que o cliente é atendido por socorristas. Em uma das gravações, o homem é derrubado e atingido por ao menos 12 socos. Ao fundo, uma pessoa grita "vamos chamar a Brigada (Militar)".

Uma mulher vestindo uma camisa branca e um crachá, que também seria funcionária do supermercado, aparece ao lado dos agressores, filmando a ação. Ela já foi identificada e será ouvida. Outro registro  mostra a vítima desacordada, enquanto há marcas de sangue no chão.

'Imagens horripilantes'

Em entrevista ao Estadão, o vice-governador do Rio Grande do Sul e secretário estadual da Segurança Pública, Ranolfo Vieira Júnior, disse  ter ficado chocado com as imagens de agressão. "Sou delegado da Polícia Civil, tenho experiência de 30 anos na área de segurança e os vídeos pra mim falaram por si só. Aquelas imagens são horripilantes. É a denominação que eu tenho para aquilo. Embora tenha experiência, estou chocado, tive dificuldades para dormir", disse.

Ele informou que foi comunicado sobre o crime às 22h20 desta quinta e que acompanhou de maneira remota – por estar com covid-19 – a prisão, investigação e o flagrante. "Ficou determinado a apuração absoluta dos fatos. Já tem dois indivíduos recolhidos, perfeitamente identificados; já houve a atuação em flagrante pela prática de homicídio triplamente qualificado", afirmou.

Para Vieira Júnior, nada justifica a ação dos agressores. "Nós estamos apurando ainda o que ocorreu dentro do mercado. Parece que houve um desentendimento entre a vítima e funcionários do mercado, que de qualquer forma não justifica em nada a ação como um todo", disse.

Segundo o vice-governador, foi instaurado um processo administrativo disciplinar em relação ao caso do policial militar temporário. "É um processo sumário em razão dessa precariedade do contrato com base exatamente no flagrante. No máximo em 10 dias já temos a solução desse caso. Mas acredito que vai ser demitido sumariamente", disse Vieira Júnior.

De acordo com o delegado Leandro Bodoia, plantonista da Delegacia de Homicídio e Proteção à Pessoa (DHPP), testemunhas disseram que João Alberto fez "gestos agressivos" dentro do supermercado ao passar as compras no caixa. "Não foi nada muito grave", diz o delegado.

Neste momento, os seguranças foram chamados e o conduziram para fora da loja. A esposa da vítima seguiu dentro do estabelecimento, finalizando a compra.

Segundo Bodoia, câmeras de segurança mostraram o homem desferindo um soco no segurança. Neste momento teria começado uma série de agressões. Uma ambulância do Samu foi ao local e tentou reanimá-lo, mas ele não resistiu.

O delegado afirma ainda que nenhuma arma foi usada no crime. A perícia no local foi realizada no fim da noite de quinta-feira. A polícia vai analisar as imagens de câmeras de segurança e de testemunhas e vai colher depoimentos.

O caso foi encaminhado para a 2ª Delegacia de Polícia de Homicídios e Proteção à Pessoa (DPHPP), sob a responsabilidade da delegada Roberta Bertoldo, que prosseguirá com a investigação dos fatos.

"A gente gritava 'tão matando o cara', mas continuaram até ele parar de respirar", diz testemunha

Vizinho da vítima, Paulão Paquetá contou ao 'Estadão' ter testemunhado as agressões. “Estava chegando no local na hora das agressões. Eu estava a uns 10 metros quando começou. Tentamos intervir, mas não conseguimos”, relata. 

Paulão diz que a esposa da vítima também viu o espancamento, mas foi impedida de intervir. “Ela viu o marido sendo morto.”

Segundo ele, cerca de outros oito seguranças ficaram no entorno da área, impedindo a aproximação das pessoas que tentavam parar com as agressões. “Não pararam. A gente gritava ‘tão matando o cara’, mas continuaram até ele parar de respirar, fizeram a imobilização com o joelho no pescoço do Beto, tipo como foi com o americano (George Floyd, morto por policiais neste ano nos Estados Unidos).”

Presidente da Associação de Moradores e Amigos do Obirici, Paulão estima que as agressões duraram cerca de 7 minutos. Ele diz que motoboys que filmaram a violência tiveram os celulares tomados para não registrar toda a ação. “Quando viram que ele parou de respirar, se apavoraram. Chamaram a Brigada (Militar), que isolou ali e a Samu tentou reanimar.”

Segundo o líder comunitário, a vítima morava no IAPI, bairro nas proximidades do supermercado. “Não é primeira ocorrência do tipo. É a primeira de óbito. Todo mundo sabe que são agressores (seguranças do local) mesmo.”

“É muito difícil. Revolta pela maneira que ele foi morto brutalmente. Ser humano nenhum merece ser agredido daquela jeito, ter a vida ceifada de maneira tão brutal, tão animal.” João Alberto – ou Beto, como era conhecido – era torcedor do São José, time porto-alegrense da série C do Campeonato Brasileiro. Ele era integrante da torcida Os Farrapos.  Nas redes sociais, o clube lamentou a morte do torcedor. “Mais um caso de violência que escancara a desigualdade de direitos que permeia o dia a dia da sociedade. Seja no futebol ou fora dele, o preconceito estrutural está presente, como uma chaga que cura”, publicou.

Posicionamento do Carrefour

Leia a nota na íntegra:

"O Carrefour informa que adotará as medidas cabíveis para responsabilizar os envolvidos neste ato criminoso. Também romperá o contrato com a empresa que responde pelos seguranças que cometeram a agressão. O funcionário que estava no comando da loja no momento do incidente será desligado. Em respeito à vítima, a loja será fechada.

Entraremos em contato com a família do senhor João Alberto para dar o suporte necessário.

O Carrefour lamenta profundamente o caso. Ao tomar conhecimento deste inexplicável episódio, iniciamos uma rigorosa apuração interna e, imediatamente, tomamos as providências cabíveis para que os responsáveis sejam punidos legalmente.

Para nós, nenhum tipo de violência e intolerância é admissível, e não aceitamos que situações como estas aconteçam. Estamos profundamente consternados com tudo que aconteceu e acompanharemos os desdobramentos do caso, oferecendo todo suporte para as autoridades locais". Histórico

Outro fato semelhante aconteceu no supermercado Extra, do grupo GPA, em fevereiro do ano passado. Pedro Gonzaga, um jovem negro de 19 anos, foi imobilizado e morto por um segurança de uma unidade do Rio de Janeiro. Na época, imagens mostravam o segurança deitado sobre o jovem, que estava aparentemente desacordado. As investigações apontaram que a vítima não portava armas e não oferecia risco algum.

Esta também não é a primeira vez que o Grupo Carrefour protagoniza uma história de agressão. Em dezembro de 2018, um outro segurança do supermercado que trabalhava em uma unidade de Osasco (SP) confessou ter envenenado um cachorro e, depois, o espancou até a morte. Meses depois, o Ministério Público de São Paulo (MP-SP) estipulou que o Carrefour deveria pagar R$ 1 milhão em razão dos maus-tratos cometidos pelo funcionário. O fato gerou grande mobilização nas redes sociais..