A maior facção criminosa do Rio é a que domina o Pará e o Amazonas, estados que têm enviado traficantes para se esconderem em favelas fluminenses
As alianças da maior facção do tráfico do Rio com bandidos de outros estados, em especial do Norte e do Nordeste, podem ter como um dos principais objetivos a exploração de uma rota denominada Solimões, em alusão ao rio na Amazônia. Em pequenos barcos, utilizando ainda os rios Negro e Madeira, as quadrilhas trazem do Peru, da Bolívia e da Colômbia grandes quantidades, principalmente, de cocaína e skunk, que são distribuídas para o restante do país ou enviadas à Europa. Investigações das polícias do Amazonas e do Pará apontam que cariocas vêm explorando o percurso, em parceria com criminosos da Região Norte. A Polícia Civil do Rio também apura o uso desse caminho.
A maior facção criminosa do Rio é a que domina o Pará e o Amazonas, estados que têm enviado traficantes para se esconderem em favelas fluminenses. Em ambos, parcerias fechadas por criminosos no Presídio Federal de Catanduvas, no Paraná, foram cruciais para a consolidação do Comando Vermelho no Norte, de acordo com dados de inteligência. Em operação no mês passado, no Complexo do Salgueiro, em São Gonçalo, nove traficantes paraenses foram mortos, entre eles Leonardo Costa Araújo, o Léo 41, que era “presidente da filial” da facção carioca em seu estado e considerado o criminoso mais procurado em sua terra natal. Em maio de 2022, em operação com 25 mortos no Complexo da Penha, quatro eram paraenses e um, amazonense. Três anos antes, o segundo homem na hierarquia da “filial” no Amazonas, Silvio Andrade Costa, o Silvinho, já tinha sido preso no Rio.
Sem espaço no Paraguai
O interesse da facção carioca pela rota do Norte do país tem relação com um assassinato na fronteira do Brasil com Paraguai. Em junho de 2016, Jorge Rafaat, conhecido como o Rei da Fronteira, foi executado com 16 tiros. O bandido, que controlava o tráfico de drogas nas cidades de Ponta Porã (MS) e Pedro Juan Caballero, no Paraguai, era grande fornecedor das quadrilhas do Rio. Com sua morte, uma facção paulista tomou o controle da fronteira, e os cariocas, sem espaço, passaram a buscar rotas alternativas.
A aliança com o Norte transformou o Rio num porto seguro para bandidos de fora. Os forasteiros começaram a chegar em 2019, quando o sistema prisional do Pará sofreu uma intervenção federal e a repressão ao tráfico foi intensificada diante dos ataques a agentes de Segurança Pública. Segundo informações da polícia paraense, no início, os traficantes do Norte pagavam taxas para se esconder nas favelas fluminenses. Logo em seguida, no entanto, Léo 41 costurou uma aliança mais robusta, possibilitando que os traficantes do Rio explorassem a rota Solimões para trazer cocaína. Com isso, o criminoso conquistou relevância no tráfico do Rio, chegando a ganhar duas comunidades em São Gonçalo.
A estimativa da Polícia Civil do Pará é que 150 traficantes do estado do Norte estejam escondidos no Rio usando documentos de identidade falsos. Coordenadora do Grupo de Atuação Especial no Combate ao Crime Organizado (Gaeco) do Ministério Público do Pará, a promotora Ana Maria Magalhães de Carvalho reitera que o cenário que se desenhou no estado, com o aumento da repressão, foi fundamental para que os criminosos paraenses buscassem esconderijos distantes. Ela frisa que, além do Rio, os bandidos migraram para o Amazonas e para Santa Catarina.
— Eles (bandidos do Pará) fizeram uma verdadeira academia no Rio. A facção aqui é como se fosse uma franquia, com independência. Mas funciona como eles aprenderam no Rio. Claro que a contrapartida para estarem no Rio é dinheiro, são negócios. E conseguem, foragidos, continuar comandando o tráfico aqui — explica a promotora.
Investigações e estudos acadêmicos demonstram que os carregamentos de drogas fazem escala em Manaus, capital do Amazonas, antes de chegarem a cidades paraenses. De lá, a droga é escoada para outros estados ou seguem para fora do país. A viagem internacional começa em contêineres no porto de Vila do Conde, em Barcarena, no Pará, administrado pela Companhia Docas do Pará. Em julho do ano passado, foram apreendidos, em Portugal, 320 quilos de cocaína escondidos em açaí congelado. O entorpecente tinha saído de Barcarena. Integrantes da quadrilha foram presos, entre eles um empresário paraense, capturado quando desembarcava no Rio. Segundo informações da Polícia Civil do Pará, traficantes cariocas já exploram essa rota internacional.
De acordo com o professor Roberto Magno, da Universidade Federal do Pará (UFPA), o porto de Barcarena ganhou importância após a guerra na fronteira do Brasil com Paraguai. O acadêmico fez sua tese de doutorado sobre a influência do tráfico internacional de cocaína na Região Metropolitana de Belém.
— Esse porto ganhou nova significação após a guerra na fronteira. Ele está no meio do caminho, perto dos portos da África e da Europa — detalha.
Para o promotor de Justiça e coordenador do Gaeco do Amazonas, Igor Starling, o interesse dos traficantes do Rio ao abrigar os criminosos foragidos de seu estado é o acesso à tríplice fronteira — ponto onde se encontram Brasil, Colômbia e Peru, no Amazonas — e às rotas de drogas na região. Por outro lado, ao virem para o Rio, os amazonenses buscam aproximação com os chefes da facção no estado, além de se esconderem das autoridades e dos rivais. Em 2019, um racha na quadrilha que dominava o Amazonas, quase extinta hoje, abriu espaço para a facção fluminense. Silvinho, ao ser preso no Rio, estava jurado de morte em seu estado.
— Aqui, eles são “decretados” pelo outro lado, que paga prêmio pela morte deles. Então, eles ficam preocupados em serem presos e mortos pelos rivais — explica Starling.
Investigações das polícias fluminense e amazonense apontam que, na aliança de Silvinho com traficantes cariocas, o amazonense usou a rota do Solimões para trazer skunk para o Rio. Para os investigadores, apesar da guerra com a facção paulista na fronteira com o Paraguai, grande parte da maconha que entra no Rio ainda vem do país vizinho, mas por rotas alternativas.
Trincheiras no rio
Os complexos da Penha, do Salgueiro e da Maré e a Favela da Rocinha são mais buscados pelos bandidos de fora em razão da dificuldade de a polícia entrar nessas regiões. O Rio também atrai criminosos da Bahia, do Rio Grande do Norte, do Ceará, de Sergipe e do Mato Grosso. No início deste mês, Gabriel Ítalo da Silva Costa, um dos chefes do tráfico de drogas no Mato Grosso, foi preso na Nova Holanda, na Maré, dominada pela maior facção do estado. O delegado Caio Fernando Álvares de Albuquerque, da Delegacia de Homicídios e Proteção à Pessoa de Cuiabá, estima que haja outros três comparsas do criminoso no Rio.
Para o delegado, a contrapartida para que os mato-grossenses sejam aceitos no Rio é a exploração de outra rota de droga — a que sai da Bolívia, um dos maiores produtores de cocaína, e entra no Brasil pelo Mato Grosso. A capital do estado, Cuiabá, fica a pouco mais de 200 quilômetros da fronteira.
— A gente sabe que o Mato Grosso tem uma extensa fronteira seca com a Bolívia. Esse pessoal de Cuiabá pode ser usado como uma frente de entrada dessa droga para o Rio de Janeiro. Certamente estão fazendo essa ponte — analisa Albuquerque.
Procurada, a Companhia Docas do Pará informou que, “quando há investigações em curso e a empresa é acionada, são realizadas operações conjuntas com a Polícia Federal e a Receita Federal, observadas as competências institucionais de cada órgão”.