Representante do Conselho das Populações Extrativistas, Angela Maria Feitosa Mendes vivencia o fogo na Amazônia a partir do Acre. "Meu pai estaria muito triste, e organizaria um grande empate", afirma em entrevista à DW.
Há muito os incêndios na Amazônia deixaram de ser uma questão brasileira. Fumaça e fogo se alastram e ameaçam os países vizinhos, que oferecem ajuda para o combate às chamas. Lideranças europeias cortam verbas ambientais e ameaçam cancelar o acordo Mercosul-União Europeia, em reação ao antiambientalismo e negacionismo da presidência de Jair Bolsonaro. Escaramuças diplomáticas até trocas de insultos se sucedem, e o assunto figura no topo da agenda da conferência de cúpula do G7 deste fim de semana (24-26/08).
Nesta quinta-feira, a partir Rio Branco, capital do Acre, Angela Maria Feitosa Mendes falou à DW sobre as queimadas no seu estado natal. Filha do seringueiro, sindicalista e ativista ambiental Chico Mendes, ela segue o trabalho do pai, assassinado em 1988 enquanto lutava pelos direitos dos povos da floresta.
Para a representante do Conselho Nacional das Populações Extrativistas e do Comitê Chico Mendes, não há dúvida: apesar de as queimadas serem um problema sazonal e recorrente, "o desmatamento aumentou no Acre cerca de 300% em relação a 2018".
E o papel da atual política nacional é inegável, para Angela Mendes, pois, além precarizar os órgãos ambientalistas, o presidente populista de direita "está a serviço do grande capital e, principalmente, do governo americano, nos submetendo, enquanto brasileiros e brasileiras, a uma série de constrangimentos".
DW: Você está vendo a fumaça das queimadas agora, de sua casa em Rio Branco?
Angela Maria Feitosa Mendes: Não só dá para ver, como dá para sentir a fumaça entrando nos teus pulmões. É uma lástima grande, e a gente fica muito triste. Onde quer que se esteja em Rio Branco ou no Estado do Acre, se percebe isso, se abre a janela e não se consegue enxergar o céu, de tanta fumaça.
A situação aqui está gravíssima, é muita fumaça na cidade, e as pessoas estão com problemas respiratórios. É bem complicado aqui no Acre, como em toda a Amazônia.
Onde há mais fogos atualmente?
A queimada ocorre com maior intensidade na floresta. Mas os focos de queimada também estão muito presentes na cidade, onde tem uma matinha, onde tem terreno baldio. E nos lados da BR também estão intensos.
Quem está ateando fogo?
Quem bota fogo é o povo que cria gado, que quer abrir novas pastagens. Ou seja: eles preferem abrir mais floresta, queimar mais floresta, do que recuperar o que já existe de pasto degradado. Onde o fogo é mais intenso é nas fazendas, nas propriedades.
E agora a gente está enfrentando mais um problema, pois tanto o governador quanto o nosso presidente [Jair Bolsonaro] estimulam isso, colocam discurso que agora pode desmatar, que o órgão ambiental fiscalizador não pode multar. E quem for multado não precisa pagar. Se é fato que todos os anos a gente passa por esse mesmo problema, por essa mesma situação caótica, este ano o desmatamento aumentou no Acre cerca de 300%, em relação ao ano passado.
É bem complicado, porque a gente não tem a quem recorrer. E é aquela sensação de impunidade, que dá a esse pessoal o direito, que eles entendem, de desmatar e de queimar.
Os bombeiros estão combatendo as queimadas?
Combater, combate. Mas a gente não tem um número suficiente, porque os incêndios acontecem em todo o estado. Não tem como os bombeiros estarem em todos os lugares ao mesmo tempo.
O presidente Bolsonaro tem culpado as ONGs pela situação. Foi uma surpresa para você?
Eles sempre nos colocam nessa situação de inimigo: "É de esquerda, é petista, é ONG ambientalista." Tudo eles colocam no mesmo saco, e nos declararam inimigos do país. A gente percebe que, na verdade, o presidente está a serviço do grande capital e, principalmente, do governo americano, se submetendo – e nos submetendo enquanto brasileiros e brasileiras – a uma série de constrangimentos.
Ele tem que culpar alguém, e culpa e criminaliza as ONGs e os movimentos socioambientais. Desde a campanha dele, a intenção, que ele dizia, é que ia combater mesmo e criminalizar os movimentos. Isso agora é parte dessa estratégia dele de enfraquecer a sociedade civil e os movimentos socioambientais.
Na Europa já se fala de sanções contra o Brasil. O que acha disso?
Isso seria uma estratégia. Porque a gente percebe que setores que estão ao lado dele, que sempre o apoiaram, o setor ruralista, agora já tem uma outra percepção de que todas essas atitudes dele, todo esse discurso, têm afastado e têm sido ruins para o mercado brasileiro. [Os setores] já se colocam contra essas loucuras que ele comete. Acho que é por aí, até que os próprios setores se sintam pressionados e nos ajudem também a combater esse estado de coisas. Tem que doer no bolso, como se diz por aqui.
Outro caminho seria o povo brasileiro ir às ruas, tomar as ruas mesmo, se manifestar firmemente, duramente, contra isso, ocupar Brasília, organizar atos em defesa da Amazônia em vários estados do país.
No campo, as pessoas sabem quem toca fogo. Mas não denunciam?
Olha, muito pouco se faz. Crendo tanto nessa impunidade, as pessoas acabam também não denunciando. Porque sabem que não vai dar em nada. Infelizmente essa mentalidade ainda existe. O Ministério Público é um órgão que tem agido bastante, tem sido demandado, mas quando vai investigar, nunca acha nada.
Ninguém consegue descobrir a origem do fogo. Há denúncias, só que tem que apurar, e nunca se acha de fato qual foi a origem desse fogo. Muitas vezes áreas de pequenos produtores são afetadas, e eles acabam perdendo sua produção. Mas registram um boletim de ocorrência e fica por isso mesmo.
O Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) está agindo no campo?
Muito precariamente. O presidente retirou e cortou recursos dos órgãos ambientais. Ele agiu com força nesse sentido. Cortou recursos, portanto cortou a possibilidade de o Ibama agir de forma mais efetiva. Tanto o Ibama quanto o [Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade] ICMBio são órgãos que estão precarizados, não têm funcionários, não têm recursos.
O que seu pai faria nessa situação?
Com certeza ele estaria muito triste, porque foi ele, com várias lideranças, que deram a vida para criar esse legado grande de território protegido. Não foi por isso que o Chico deu a vida, que Dorothy Stang deu a vida, que José Claudio Ribeiro da Silva e Maria do Espírito Santo deram a vida. Meu pai estaria muito triste, e com certeza estaria organizando um grande empate contra tudo isso, como eles fizeram na floresta para impedir o desmatamento. Mas ele sempre foi um cara do diálogo.
Por muitos anos, o Brasil avançou na questão ambiental. Você esperava por esta situação atual?
A gente achou que o que já se construiu agora estava garantido. E que a tendência era avançar nas conquistas. Mas não. A gente percebe que o que foi conquistado até agora a custo, inclusive da vida de muitas boas lideranças, não está nada garantido. A gente tem um presidente que passa por cima da Constituição, que passa por cima dos direitos adquiridos, e que não está nem aí para isso.
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