Edna Shanenawa (Pekãshaya) diz que desde o começo do governo Jair Bolsonaro as populações indígenas do Brasil vêm sendo dizimadas e têm sua sobrevivência ameaçada, incluindo o direito de posse da terra.
A pandemia causada pelo avanço do novo coronavírus agravou uma situação já bastante delicada enfrentada pelos povos indígenas do Brasil desde o dia primeiro de janeiro de 2019, quando Jair Messias Bolsonaro assumiu o cargo de presidente da República. Ainda durante a campanha eleitoral de 2018, o então deputado federal mostrava todo o seu desprezo pela questão indígena, afirmando haver muita terra demarcada para poucos índios, o que inviabiliza o uso destas áreas para a agricultura ou pecuária, além da mineração, travando o “desenvolvimento” do país.
Bolsonaro também defende a legalização do garimpo dentro das terras indígenas, atividade que causa inúmeros impactos ambientais e sociais para essas comunidades. Os discursos do presidente têm incentivado a invasão dos territórios tradicionais por garimpeiros, madeireiros e grileiros de terras públicas, criando confrontos que provocam o assassinato de índios.
Em meio a todo este cenário, agora os povos indígenas precisam sobreviver ao avanço do coronavírus no Brasil, enquanto o governo Bolsonaro boicota todas as políticas adotadas de enfrentamento à crise de saúde. Segundo dados da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), já são 236 índios vítimas fatais da Covid-19, enquanto outros 2.390 testaram positivo. A doença já impactou 93 diferentes etnias.
Para Edna Shanenawa, que foi cacique da aldeia Shane Kaya entre 2014 e 2016, o momento causa grandes impactos para as comunidades indígenas, agravada pela política do governo federal de retirar direitos. “[Bolsonaro] vem dizimando a população indígena, tirando nossos direitos. Ele retira nosso direito de sobrevivência, de estarmos dentro de nossas terras”, afirma ela entrevista ao blog.
Para ela, a melhor forma de sobreviver à doença causada pelo coronavírus é se manter isolado dentro das aldeias, evitando de ir às cidades. Pekãshaya (como é seu nome na língua dos Shanenawa) diz que o isolamento também deve ser adotado pelas comunidades vizinhas às aldeias, como as de extrativistas e ribeirinhos. “Vamos conscientizar todos, porque se nós fizermos a nossa parte e o nosso vizinho não, a gente não vai estar ajudando nem um, nem outro.”
Edna Shanenawa ficou conhecida no Acre por liderar a criação da aldeia Shane Kaya, conhecida como a “aldeia das mulheres”. A aldeia ficou assim conhecida por ter sua organização social e comunitária liderada pelas filhas do tuxaua Shuayné, liderança máxima dos Shanenawa (povo do pássaro azul). Como ele só teve filhas mulheres, a sucessão natural da liderança passaria para elas. Essa hereditariedade, contudo, não foi fácil, e Edna precisou enfrentar muito preconceito e resistência.
Nesta entrevista ela avalia o atual momento vivido pelos povos indígenas da Amazônia em meio às ameaças provocadas pelo governo Jair Bolsonaro e a pandemia do coronavírus. Pekãshaya também fala sobre como foi assumir a função de cacique e os desafios para as mulheres indígenas dentro de sociedades patriarcais.
Leia:
As populações indígenas sofrem uma série de ameaças desde a chegada de Jair Bolsonaro à Presidência da República, no começo do ano passado. Agora, em 2020, surge uma pandemia que também coloca em risco a sobrevivência destes povos. Como você avalia toda essa situação?
Pekãshaya: Desde o começo do ano passado, o nosso governo brasileiro, do senhor Jair Bolsonaro, vem dizimando a população indígena, tirando nossos direitos. Nós cumprimos os nossos deveres, mas ele vem tirando nossos direitos por meio de leis e leis. Ele retira nosso direito de sobrevivência, de estarmos dentro de nossas terras. Mas nós somos resistentes e vamos resistir. Essa pandemia está afetando direta e indiretamente a população indígena, principalmente na Amazônia. Eu dei uma entrevista quando se falava da criação dos povos da floresta [no fim de 2019], que um dia a mãe terra, os seres divinos, iriam cobrar [pelos impactos da destruição da natureza], e não se passou um ano, foram meses, e hoje estamos vendo a cobrança, vendo esse vírus afetando a todos. Por quê? Porque a mãe terra quer dar um basta em todas as maldades que o homem branco, os seres humanos, estão fazendo. Muitas das vezes somos chamados de índio preguiçoso, mas nós não somos preguiçosos, nós somos preservadores. Nós plantamos para a nossa alimentação, para a nossa segurança alimentar. Não plantamos só pensando em nós. Plantamos pensando no hoje, no amanhã e no depois, de como será o futuro de nossas gerações.
Qual a melhor forma de os povos indígenas enfrentarem este momento de pandemia?
Pekãshaya: Uma recomendação que eu quero deixar com essa pandemia para os nossos povos indígenas é que fiquem todos em casa. Que quando saírem, que quando tiver necessidade de ir para cidade, que vá duas ou uma pessoa para comprar o que a gente não produz dentro da aldeia, porque hoje não dá para dizer que o índio vive só da floresta. Eu vou estar mentindo se eu falar isso. Hoje o índio não vive só da floresta. Nós não temos culpa de não vivermos só da floresta. Isso foi porque o colonizador, quando chegou ao Brasil, ele já vem tirando o nosso direito da nossa sobrevivência, da nossa alimentação, de tudo, dando açúcar, dando óleo e dando um sal que a gente não comia. Então isso a gente necessita vir para a cidade comprar.
As aldeias estão protegidas de uma possível entrada do vírus?
Pekãshaya: Além de nós indígenas também tem nossos povos parentes tradicionais, que eu não vejo momento algum falarem sobre eles, mas quero deixar essa minha palavra, que fiquem todos em casas porque eles são nossos vizinhos da nossas terras indígenas. Mesmo se o parente fica na aldeia e nossos vizinhos vão para a cidade, não estamos nos protegendo. Então vamos conscientizar nós população indígena, mas também nossos vizinhos que são os seringueiros, os colonos, os extrativistas, os ribeirinhos. Vamos conscientizar todos, porque se nós fizermos a nossa parte e o nosso vizinho não, a gente não vai estar ajudando nem um, nem outro. Eu peço para que todos fiquem nas nossas aldeias, na nossas terras indígenas.
De que forma a pandemia do novo coronavírus impacta as comunidades indígenas?
Pekãshaya: Ele está chegando muito forte em nossas terras indígenas. Ele está chegando forte porque nós indígenas somos muito humanos. Quando alguém da nossa família morre ficamos muito sensíveis. Nós somos muito acolhedores, acolhemos outras famílias. Então a aldeia toda fica de luto, e tem aldeias por aí que não estão fazendo isso [poder enterrar as vítimas do vírus]. Então o primeiro impacto é esse, não poder fazer o velório do parente. Isso para nós é uma dor muito forte. Outro impacto que vem dentro da nossa aldeia é na geração de renda. Não estamos podendo abrir nossas aldeias para receber os turistas, os visitantes, que são os compradores de nossos artesanatos. O nosso artesanato ajuda na geração de renda das nossas famílias, principalmente de nós mulheres, porque quem faz artesanato são mais as mulheres. Os homens fazem, mas pouco. As mulheres fazem mais, então tem esse impacto muito grande. Sem essa venda ficamos sem recurso para comprar o material de higienização, de limpeza, que tanto necessita na nossas aldeias neste momento de pandemia. Nós sobrevivemos do nosso artesanato, do contrato provisório de professores, de agente indígena de saúde. Muito pouco aqui no nosso município de Feijó recebe Bolsa Família.
Como foi para você assumir o papel de uma liderança feminina dentro de sociedades patriarcais, como as indígenas?
Pekãshaya: Nós, mulheres indígenas, sempre somos uma referência muito importante dentro de nossas aldeias porque é a mulher quem cuida do dia a dia da aldeia, desde a limpeza da sua casa, da educação dos seus filhos, mas a mulher indígena sempre cai na invisibilidade. Eu cheguei a ser conhecida como a líder, como representante do povo Shanenawa, porque meu pai com a minha mãe só teve filha mulher. Nós somos seis mulheres. Essa liderança ela é transmitida, é hereditária, de geração para geração. Portanto, o meu pai só teve filha mulher com minha mãe. Ele sofreu preconceito dentro do nosso povo porque o nosso povo falava que como ia ficar pois ele não tinha filho homem com a minha mãe. Mas meu pai foi muito guerreiro. Fomos aprendendo com ele como liderar o nosso povo, a nossa aldeia e a nossa casa.
Foi fácil assumir essa liderança, mesmo ela sendo natural já que seu pai, como líder maior do povo Shanenawa, só teve filha mulher?
Pekãshaya: Eu disse que eu ia ser cacique porque mesmo que fosse hereditária, também depende muito da pessoa, se ela já nasce com aquele dom. Eu digo que quando a mulher ou o homem é cacique não é simplesmente porque queremos, é porque já viemos com isso, com esse espírito de guerreira, de defender, de ser um defensor da causa indígena, e eu nasci com esse espírito e não tive medo de ser essa mulher. Lutei contra todos e todas quando meu pai me escolheu para que fosse, junto com minhas irmãs, a cacique. Quando meu povo me convidou eu enfrentei esse desafio porque todo soldado está preparado para guerra seja qual for, e eu estava preparada.
Como foi exercer esse papel de liderança?
Pekãshaya: Nós mulheres sabemos organizar a nossa comunidade. O nosso povo tem a nossa organização social interna, só precisamos ter a oportunidade. Mas não foi fácil porque os homens não dão direito de voz para a gente se expressar, o que a gente sente, para a gente expressar uma sugestão, para a gente sugerir como a gente pode trabalhar, então a gente é muito criticada. Eu digo que eu não quebrei ainda essa barreira. Muitas pessoas dizem que não tem, mas tem sim muito preconceito. A gente só quer somar, só quer contribuir com os homens. Como a gente organiza na nossa casa, dentro da nossa família, nós organizamos na vida em comunidade. Não querendo desmerecer os homens, mas organizamos melhor. É daí onde vêm as críticas, a inveja, os preconceitos e tem que ser forte, tem que ter o espírito de guerreira mesmo para ser uma líder, uma cacique ou um representante daquele povo porque os homens, não diria todos, ainda têm aqueles velhos pensamentos que mulher é só para cozinhar, plantar, colher, fazer artesanato e cuidar dos seus filhos. Mas para recepcionar, dirigir reunião, dirigiu seu trabalho ainda está muito difícil no mundo indígena, especialmente onde tem homem machista, onde tem as lideranças machistas. Não são todos, mas ainda tem no mundo de hoje, e é por esse motivo que não tem muitas mulheres lideranças dentro dos povos indígenas.
E qual mensagem você deixa para as mulheres indígenas que sentem a vocação de assumir essa liderança, mas têm receios?
Pekãshaya: A maioria dos homens machistas, que não são todos, pensa que as mulheres não tem que subir de degrau, tem que ficar só no primeiro degrau. Mas hoje a gente não pode deixar isso acontecer. Eu quero deixar essa mensagem para as mulheres indígenas, para as mulheres do modo geral, que não tenham medo se você nasceu com espírito de líder, de ser lutadora, não tenha medo do que vem porque nós somos mães. Se não fossemos nós mulheres os homens não tinham nascido, então nós não temos que ter medo dos homens, também nós não temos que bater de frente com eles. Porém nós temos que mostrar que nós também temos a capacidade de organizar, de realizar, de buscar, de reivindicar. O meu sonho hoje é que a maioria das aldeias tivesse mulher cacique, tivesse mulher cacique assim como nós conquistamos ter mulher professora, mulher agente agroflorestal, ainda está se iniciando de mulher agente de saúde. Então meu sonho é ver cada vez mais empoderada as mulheres indígenas com o cargo de cacicada para que elas também pudessem realizar as suas atividades em cada aldeia qual elas vão representar.
Leia mais sobre os povos indígenas do Acre no blog do Fabio Pontes