Uma vida dedicada ao MP
A promotora de Justiça Joana D'arc Dias Martins dedica há 21 anos sua vida ao Ministério Público do Estado do Acre.
Ela ingressou no órgão em 2003 após ser aprovada em um concurso no ano anterior. Teve a opção de trabalhar na PGE, Procuradoria-geral do Estado, quando passou no concurso da instituição em 2001, mas preferiu o MPAC.
“À época eu residia em Rondônia, Ji-Paraná, e concluí minha faculdade de Direito naquele Estado, em agosto de 2001. Havia iniciado os estudos em Goiânia, local onde residi até o ano de 1999. Então, logo após à conclusão da graduação, eu prestei dois concursos aqui no Acre e em ambos eu fui aprovada. O primeiro foi da PGE, ainda no ano de 2001, e o outro foi do Ministério Público, no ano de 2002, cuja posse aconteceu em janeiro de 2003.”
Doutora (2022) e mestre em Direito (2020) pela Universidade de Marília – SP (Unimar), pós-graduada em nível de Especialização em Direito Ambiental (2022) e em Direitos Humanos (2023) pela Faculdade Cers, em Direito Processual Civil (2002) pelo Instituto de Ensino Superior da Amazônia e Centro de Estudos Jurídicos de São Paulo – CAEJ e em Direito Público (2003) pela Universidade Luterana do Brasil – Ulbra, graduada no ano de 2001 em Direito pela Ulbra (Universidade Luterana Brasileira), Joana D'arc atua como titular da 2ª Promotoria de Justiça Criminal e, atualmente, é diretora do Ceaf-MPAC (Centro de Estudo de Aperfeiçoamento Funcional). Ela é autora dos livros: "Tributação consumo e meio ambiente: a tributação ambiental como controle do consumo e seus reflexos no meio ambiente" e “Mudanças Climáticas em Face do Atual Estado de Coisa Inconstitucional e Inconvencional”, além de diversos artigos científicos.
A promotora vive, agora, a possibilidade de um novo desafio. Ela é a única mulher em uma lista de sete membros para uma vaga em uma Procuradoria Criminal, que era ocupada pela procuradora de Justiça Giselli Mubarac, e será preenchida por critério de merecimento em abril deste ano.
Joana D'arc conversou com o Notícias da Hora, falou sobre sua trajetória e apego ao Ministério Público, desafios, metas e sonhos.
Veja alguns dos principais pontos da entrevista:
NH: Para além de passar em um concurso público, certamente concorrido, a senhora tinha um sonho profissional?
Joana D'arc: Eu me casei muito cedo e aos 19 (dezenove) anos eu já era mãe. Como residia no interior de Rondônia, local distante de qualquer faculdade, após a conclusão do ensino médio, por muito tempo eu não tive condições de continuar os meus estudos. Apenas no ano de 1997, quando eu me mudei para Goiânia, é que eu pude começar a fazer uma faculdade. Nessa época eu já tinha 22 (vinte e dois anos) e tinha um sonho muito grande de voltar a estudar. E por mais que eu me simpatizasse mais pelo curso de Direito, estava disposta a fazer qualquer curso que eu conseguisse a aprovação no vestibular, porque o importante para mim naquele momento era estudar. Mas acabei conseguindo ser aprovada no Curso de Direito.
E no segundo semestre da faculdade eu comecei a cursar a disciplina de direito penal e me apaixonei. O Professor era o Promotor de Justiça do Estado de Goiás, Dr. Isaac Benchimol (já falecido). E foi ali, principalmente assistindo sessões do Tribunal do Júri, que eu descobri que eu tinha perfil para ser Promotora de Justiça. Mas naquela época isso parecia ser um sonho muito distante. Aos 23 (vinte três) anos de idade eu já era mãe de 2 (dois) filhos e no ano de 1999, por questões familiares, tive que transferir minha faculdade de Goiânia para Ji-Paraná-RO. Foi um processo muito difícil, porém, consegui concluir o curso em meados de 2001 e nesse mesmo ano (2001) fui aprovada na PGE do Acre. Em 2002 fui aprovada no MPAC. No final de 2002 fui convocada para assumir ambos os concursos, porém, mesmo sabendo que eu iria para o interior se assumisse o MP, não pensei duas vezes porque esse já era um sonho antigo. Então eu posso dizer que meu sonho profissional, desde que comecei a estudar, sempre foi ser Promotora de Justiça.
NH: Em quais promotorias a senhora atuou e qual delas viu maior desafio?
Joana D'arc: Eu sempre fui titular de promotorias criminais, em que pese já ter substituído colegas da área cível em inúmeras oportunidades. Atualmente, desde o ano de 2012 sou titular da 2ª Promotoria de Justiça Criminal com atribuições perante a 2ª Vara Criminal.
Tomei posse no dia 31 de janeiro de 2003 e em fevereiro já fui enviada para a cidade de Cruzeiro do Sul onde permaneci por 4 (quatro anos). Lá, além de atuar em uma promotoria criminal genérica – com atribuições para atuar em todos os tipos de crimes – também era responsável exclusiva para atuar nos julgamentos perante o Tribunal do Júri, local onde realizei centenas de julgamentos. No ano de 2008 fui transferida para a cidade de Plácido de Castro, local onde permaneci por quase 1 (um) ano e, após, vim para Rio Branco, onde permaneço até o presente momento. Em todas as promotorias em que eu atuei e que atuo atualmente, sempre apareceram muitos desafios. Isto faz parte do trabalho na área criminal. Seja pela natureza dos crimes, seja pelas vítimas. Não é um trabalho fácil. É preciso ter um preparo espiritual muito grande para desenvolver um bom trabalho e ao mesmo tempo conseguir não absorver tamanho sofrimento, porque senão você não consegue entregar o seu melhor e tampouco permanecer tanto tempo atuando na esfera criminal.
Mas certamente o meu maior desafio foi assumir a Comarca de Cruzeiro do Sul logo após a minha posse, porque à época, além de ser recém formada, tinha dois filhos pequenos – um de 7 e outra de 4 anos – e vim sozinha para o Acre. Não contava com nenhuma rede de apoio. Não bastasse isso, cheguei naquela cidade onde há muito tempo não aconteciam julgamentos perante o Tribunal do Júri. Então, com a minha chegada, tínhamos julgamentos todos os dias e precisava virar a noite estudando os processos para estar apta no dia seguinte a fazer uma boa sustentação e conseguir a condenação dos réus. Todavia, apesar desses desafios, posso dizer que fui muito bem sucedida nessa missão e até hoje lembro de Cruzeiro do Sul com muito carinho. Ali comecei minha trajetória no MPAC e sempre recebi muito carinho da população daquela cidade. Eu ainda me sinto uma cidadã cruzeirense.
NH: A senhora acha que o MP brasileiro tem cumprido seu papel na garantia dos direitos fundamentais? Às vezes o MP passa uma imagem de elitismo, de distância dos problemas, da realidade...
Joana D'arc: Eu acredito que o MP brasileiro vem evoluindo no cumprimento desse papel, todavia, ainda tem um longo caminho a percorrer para que possa se desincumbir à contento dessa nobre missão que foi tão arduamente conquistada a partir da Constituição Federal de 1988.
O MP brasileiro, coincidindo com a consolidação do regime democrático, somente com a CF de 1988 passou a ter autonomia e independência para agir da forma mais eficiente na garantia dos direitos fundamentais. Esse é um marco extremamente importante, dado que para a construção de um Estado Democrático de Direito, esta atribuição é considerada não apenas essencial, mas também vital. Portanto, consolidado o regime democrático, a luta pelos direitos humanos e fundamentais passaram a ser uma batalha pela efetiva implementação daqueles direitos previstos na nova Carta, função essa que foi atribuída em primazia a esse órgão. Hoje, o MP tem como uma de suas principais funções a atuação na defesa e efetivação dos Direitos Humanos fundamentais visando a resolução do conflito sem necessariamente precisar instaurar um processo judicial. Esse formato mais voltado à pacificação social e à modificação de valores sem a imposição de uma sanção por um juiz representa uma evidente evolução e um processo de transformação social.
Essa mudança é desenvolvida pelo MP em conjunto com a sociedade civil, por meio da elaboração de mecanismos e estratégias, cujo objetivo é justamente permitir que as promessas de cidadania previstas na CF de 1988 não fiquem apenas no papel.Portanto, não há que se olvidar da importância para a sociedade que esse órgão assumiu nos últimos anos, sobretudo na defesa dos direitos humanos e fundamentais. Nesse sentido, para que possa verdadeiramente cumprir o papel que lhe foi honrosamente reservado pela Carta Magna, mister que sua atuação se faça de forma autônoma, em nome da sociedade – principalmente visando aqueles que mais necessitam -, da lei e da Justiça, seja atuante e prime sempre pela efetivação das leis, zelando pela condução da coisa pública, procurando se firmar como um instrumento de transformação social. Por fim, não se pode ignorar que esse fortalecimento e autonomia do MP brasileiro passa também pela garantia de paridade de gênero entre os seus membros, garantindo assim a igualdade substancial de direitos e deveres entre homens e mulheres, conforme previsão constitucional.
NH: A senhora é a única mulher na lista para novo procurador (a)?
Joana D'arc: Atualmente o Ministério Público do Estado do Acre conta com 17 (dezessete) Procuradores de Justiça, dos quais apenas 6 (seis) são do sexo feminino. Essa Procuradoria que se encontra em aberto se trata de uma Procuradoria Criminal, e que anteriormente era ocupada pela Procuradora de Justiça, Dra. Giselli Mubarac. Dos 7 (sete) candidatos inscritos para concorrer a essa vaga, eu sou a única mulher. Todavia, não se trata de indicação do PGJ. Os cargos de Procurador de Justiça são preenchidos de forma alternada pelos critérios de antiguidade e merecimento.
Essa vaga será preenchida pelo critério de merecimento, então podem concorrer todos aqueles promotores de justiça que integrem a primeira quinta parte da lista de antiguidade. Contudo, considerando que apenas 27,27% dos membros do Ministério Público acriano são do sexo feminino, atualmente só existe 2 (duas) mulheres entres os promotores de justiça que se encontram nessa condição e estão aptas a concorrerem vaga para o cargo de Procurador de Justiça Criminal pelo critério de merecimento. E o pior é que mesmo futuramente, quando outras vagas foram abertas por esse mesmo critério, tão cedo não haverá mais mulheres aptas a concorrerem porque a maioria absoluta dos membros do MPAC são do sexo masculino.
No concurso que eu ingressei no MPAC, por exemplo, somente eu, em um número de 10 (dez) aprovados, era do sexo feminino. Isso prejudica muito a questão da paridade de gênero, pauta que vem sendo debatida há muitos anos e que, inclusive, já foi aprovada pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ) e que, na prática, já vem sendo aplicada desde janeiro de 2024. Em setembro de 2023, por unanimidade, o CNJ aprovou a Resolução 525, que dispõe sobre ação afirmativa de gênero, cujo objetivo é garantir às juízas de 1º grau o acesso aos Tribunais de 2º grau das Justiças Estaduais, Federais e do Trabalho, pelo critério de merecimento que ainda não alcançaram o patamar de 40% de desembargadoras mulheres nas vagas à magistratura de carreira.
Essa Resolução é de suma importância uma vez que busca atender o objetivo constitucional de igualdade de direitos e deveres entre homens e mulheres, notadamente no acesso aos Tribunais. Dado a importância dessa Resolução, e considerando também que ela institui ação afirmativa, ela é autoaplicável e as suas regras aplicam-se imediatamente às vagas abertas a partir de 1º de janeiro de 2024. Ou seja, iniciam com as efetivas vacâncias ocorridas a partir dessa data. Exemplo disso é o Tribunal de Justiça de São Paulo que no dia 16 de janeiro de 2024 aprovou a abertura de promoção para o cargo de desembargadora, pelo critério de merecimento, exclusivo para mulheres.
Esse é o primeiro edital aberto após a aprovação da referida Resolução, para promoção de juízes de carreira para a segunda instância feito com base em uma lista exclusiva de mulheres e tem uma grande relevância porque a paridade de gênero nos tribunais agrega diferentes visões de mundo às decisões.
O Ministério Público brasileiro ainda não aprovou uma Resolução com o mesmo teor. Todavia, em novembro de 2023, o Conselheiro do Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP), Dr. Jayme de Oliveira, apresentou ao Plenário do CNMP Proposta de Resolução que “Dispõe sobre ação afirmativa de gênero, para acesso das promotoras de justiça às procuradorias de justiça”, dando-se início aos trâmites Regimentais. Não obstante, considerando que a referida Resolução busca dar cumprimento ao comando constitucional que trata da igualdade de direitos e deveres entre homens e mulheres, não há que se olvidar que os Ministérios Público estaduais possam se antecipar à aprovação dessa resolução e adotar imediatamente esse critério no tocante às promoções para o cargo de Procurador de Justiça pelo critério de merecimento. Principalmente naqueles Ministérios Públicos, tais quais o MPAC, onde há manifesta afronta à paridade de gênero e seu quadro, como apontado recentemente pelo Mapa de Equidade realizado pelo CNMP (https://www.cnmp.mp.br/portal/transparencia/relatorios-em-bi/17342-mapa-da-equidade).
NH: Quais os desafios de uma mulher membro de um Ministério Público, órgão que, entre as suas muitas atribuições, luta por direitos iguais e a diversidade?
Joana D'arc: Recentemente, o CNMP publicou o Mapa de Equidade (https://www.cnmp.mp.br/portal/transparencia/relatorios-em-bi/17342-mapa-da-equidade) onde é possível observar que se um modo geral há um desequilíbrio muito grande entre o número de mulheres e homens no total de membros. Esse mesmo desequilíbrio também é observado na Magistratura brasileira. De um modo geral o problema começa antes mesmo de ingressar na carreira, e pode-se dizer que essa tímida representação feminina tem relação direta com a desigualdade no mercado de trabalho, violência e os papéis de gênero impostos desde cedo para as mulheres como um todo. Ao assumir a função como membro do Ministério Público, qualquer pessoa, independente do sexo, enfrentará uma série de desafios que muitas vezes vão muito além da nossa capacidade. Seja porque necessariamente o membro começará a carreira em alguma cidade do interior, muitas delas sem estrutura adequada para trabalhar e viver, seja porque cada vez mais, independente do volume de trabalho que assumiremos, e que demanda a maior parte do nosso tempo, precisamos estar nos atualizando para enfrentar à contento os grupos criminosos que estão se aperfeiçoando e que a cada dia mais estão se ramificando em vários setores da sociedade, e que buscam as mais diversas estratégias para permanecerem impunes.
Então, nem de longe essa função possui o glamour que muitos imaginam. No mais, assumir uma função como membro do Ministério Público significa uma vida de muita entrega e abnegação. Saber que você será promotor de justiça em tempo integral e que não pode mais se comportar como uma pessoa comum, uma vez que, independe de onde estiver, sempre será visto como um membro do Ministério Público, e como tal, tem o dever de manter conduta, tanto na vida pública como na privada, sempre ilibada. Quem pensa diferente não tem perfil para assumir tal função. Porém, quando se trata de mulheres há desafios adicionais durante a carreira que dificultam ainda mais a sua atuação, muitas delas ligadas à dupla jornada assumida e a dificuldade de acompanhamento familiar nas mudanças para o interior logo após tomar posse. Mesmo em se tratando de lotações decorrentes de eventuais promoções, elas enfrentam esse mesmo desafio, o que contribui sobremaneira para que muitas mulheres sequer concorram a essas vagas, em manifesto prejuízo para a sua carreira.
De acordo com os dados atuais, as mulheres correspondem a quase 52% da população brasileira, enquanto membros mulheres do Ministério Público brasileiro não chegam a 40%. Aqui no MPAC esse percentual é ainda pior: não chega a 28%. Essa baixa diversidade no Ministério Público brasileiro não é exclusivamente um problema das minorias sociais, mas sim de toda a sociedade. A partir da análise da dimensão interna do sistema de Justiça, ou seja, das estruturas que o compõem e das dinâmicas de ingresso e progressão na carreira, com a lente de gênero e raça, não há dúvidas que a diversidade na composição dos quadros é premissa necessária para que o MP cumpra seu compromisso constitucional com a democracia e com o Estado de Direito, garantindo assim diferentes visões de mundo.
Por fim, resta claro que a luta por representatividade interna impulsiona a reflexão sobre a realidade demográfica da população brasileira e a garantia efetiva de igualdade de oportunidades nos espaços de poder. Logo, como órgão responsável pelo fiel cumprimento da Constituição Federal, mister que o Ministério Público brasileiro, urgentemente aprove a Resolução sobre a paridade de gênero e garanta a sua aplicação.