Unidade de conservação é uma das últimas áreas de floresta do rio Acre, manancial que já perdeu grande parte de sua mata ciliar; Se não fosse essa reserva nós estaríamos hoje numa situação quase irreversível de água, diz geógrafo
O avanço do desmatamento da Reserva Extrativista (Resex) Chico Mendes é um elevado fator de risco para provocar o colapso no abastecimento de água potável para quase 70% da população acreana pelos próximos anos. Por ser uma das últimas áreas de floresta às margens do rio Acre, a Resex exerce papel essencial para garantir alguma sobrevida ao manancial já bastante impactado pela destruição de sua mata ciliar e pelo despejo de esgoto sem tratamento ao longo das últimas cinco décadas.
A cada período do “verão amazônico”, o rio Acre atinge níveis críticos em seu volume de água, levando as autoridades a adotar medidas que assegurem a não interrupção na captação e distribuição de água para as cidades dos vales do Alto e Baixo Acre. Para estes municípios, o rio é a única fonte de água, e seu “esvaziamento” levaria 65% dos 407 mil moradores da capital Rio Branco que dependem do sistema estadual de distribuição a ficar com as torneiras vazias.
O processo de degradação da floresta às margens do rio ao longo das últimas décadas - sem a contrapartida de políticas públicas que visassem a sua recuperação - é apontado como o principal motivo para essas ameaças mais frequentes, como secas e enchentes severas que desabrigam milhares de famílias. Em 2012, quando foi elaborado o Plano Estadual de Recursos Hídricos, apontava-se uma deficiência de ao menos 98 mil hectares de mata ciliar que precisava ser recuperada de forma imediata; oito anos depois, nada avançou.
Em 2020, mais uma vez, com o avançar dos dias acumulados sem chuvas, o rio Acre volta a atingir níveis críticos. Segundo o Monitoramento Hidrometeorológico elaborado pela Sala de Situação da Secretaria de Meio Ambiente (Sema), na sexta-feira, 10, o rio Acre atingiu o nível de 1,46m em Brasileia e de 2,29m em Rio Branco. Desde o início da semana o manancial apresentou uma vazante constante. De segunda para sexta ela foi de 10 centímetros na capital. A situação é classificada como “alerta máximo”.
O cenário é preocupante por ainda ter o restante de julho e os meses de agosto e setembro sem chuvas ou escassas. Por ser um rio argiloso, ele depende basicamente da quantidade de chuva para estar com volume de água que não comprometa a captação e distribuição de água potável. A presença de floresta às suas margens também evitaria o risco de um colapso total.
A cada “verão amazônico” os alertas sobre um possível colapso do rio Acre são dados, incluindo a adoção de medidas como rodízio no sistema de distribuição de água para os moradores de Rio Branco. A situação mais crítica ocorreu em 2016, quando por conta de um El Niño o rio chegou a um nível tão crítico que adaptações foram feitas para se captar a água. No início de agosto daquele ano, a marca do rio Acre ficou abaixo do 1,40m na capital.
Em 2020 também há o agravante da pandemia do novo coronavírus, cuja recomendação principal para se evitar o contágio é a constante higienização do corpo e de objetos pessoais com bastante uso de água. Com menos líquido ou até sem nas torneiras, estas medidas ficam comprometidas.
Última reserva de floresta - e de água
A situação fica mais preocupante diante do acelerado processo de degradação da última reserva de floresta do rio Acre e seu principal afluente, o Xapuri. A Resex Chico Mendes está numa das áreas mais cruciais para o rio, que é a região do Alto Acre, onde está a cabeceira, já na fronteira com o Peru. Por sinal, o completo colapso também afetaria populações do país vizinho, mais a Bolívia.
Os 930 mil hectares da Reserva Extrativista Chico Mendes pode ser considerada como uma das últimas áreas da floresta preservada na região do estado mais impactada pelo desmatamento: os Vales do Alto e Baixo Acre, no leste do território. Desde o processo de ocupação do estado por famílias do centro-sul do país - a partir da década de 1970 - imensas áreas de mata foram derrubadas para o surgimento das fazendas de gado.
Desde o ano passado, a Resex Chico Mendes sofre com o avanço do desmatamento. A falta de políticas públicas que fometem o extrativismo empurra muitos moradores para a pecuária, alimentando a destruição da floresta para a abertura de pastagens.
“Se não fosse essa reserva nós estaríamos hoje numa situação quase irreversível de água na cidade de Rio Branco e as demais. Graças a Deus existe essa reserva que pelo menos mantém as nascentes do rio Xapuri numa situação ainda confortável para manter o rio Acre pelo menos nestes poucos anos que ainda restam para ele perene”, diz o geógrafo Clodomir Mesquita.
“Se a reserva chegar ao ponto de escassear a água do rio Xapuri, que é o maior afluente do rio Acre aqui no estado, certamente estaremos numa pandemia de sede.”
Professor da Universidade Federal do Acre (Ufac), Mesquita é a referência nos estudos sobre o manancial, os impactos que vem sofrendo e as perspectivas nada otimistas para o futuro caso nada seja feito. Mesmo que ações sejam desenvolvidas agora, afirma ele, os resultados são a longo prazo.
“As cidades que se encontram no Vale do Acre são as que mais crescem, as que mais demandam água e são as que mais usam as margens para o desmatamento. Então você vê que a equação não vai fechar. Você tem uma população crescendo e um rio morrendo”, avalia ele.
O geógrafo defende que políticas sejam colocadas em prática não só no sentido de recuperar parte da mata ciliar, como também proteger a Resex Chico Mendes de um processo de degradação que está em plena aceleração. Como lembra o pesquisador, caso ocorra o colapso do rio, “não há um plano B”.
“É urgente que os gestores entrem na reserva e vejam o que está acontecendo lá, vejam o tamanho da abertura de campos, o tamanho do impacto que está ocorrendo para que a gente ainda possa beber água. Se continuarmos com os olhos fechados para a reserva que existe, ela não vai reservar o nosso futuro e nem sanar a nossa sede. Enquanto os homens não abrirem os olhos para manterem a nossa reserva florestal em pé, a vida vai perecer sim”.
A falta de fiscalização por parte do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio) e a venda ilegal de lotes de terra também impactam a unidade de conservação. Todos estes processos foram acelerados com a apresentação do projeto de lei 6024, de autoria da deputada federal Mara Rocha (PSDB-AC), cujo propósito é desafetar áreas dentro da Resex, beneficiando os maiores desmatadores.
Para ambientalistas, a aprovação da matéria vai ser o gatilho para completa degradação da área de proteção. Sem sua mata ciliar restante, o rio Acre entra em completo colapso, deixando milhares de acreanos sem acesso à água potável. Os defensores do projeto negam este impacto, dizendo que a área desafetada fica em propriedades próximas às margens da BR-317.
Contudo, o receio é o de que, com a aprovação do projeto, mais e mais moradores que já vêm desmatando a floresta para colocar o boi se sintam motivados a ampliar as áreas derrubadas, vindo a, no futuro, reivindicar a desafetação. Seria o efeito dominó da destruição da unidade de conservação.
Outro lado
A Secretaria de Estado de Meio Ambiente (Sema) foi procurada para comentar o assunto. A reportagem questionou se a pasta tem projetos de recuperação da mata ciliar do rio Acre. A assessoria limitou-se a informar que essa recuperação se dará em conjunto com os donos de propriedades rurais localizadas às margens do manancial por meio do Programa de Regularização Ambiental (PRA), do Cadastro Ambiental Rural (CAR).
“Os projetos do PRA da Sema estão em etapa de elaboração e licitação e pretende-se sua execução com início ainda em 2021, com planejamento até o ano de 2022.
“Toda iniciativa pública ou privada de recuperação de áreas às margens do rio Acre, em sua extensa grande maioria, classificadas como de Preservação Permanente (APP), deve ser aportada por meio da adesão ao PRA, com vistas a sua regularização ambiental e o apoio disponibilizado pela Sema.”
Completa a nota: “A Sema irá apoiar a recuperação destas APPs, considerando o espectro de abrangência dos projetos pilotos, distribuídos dentro do Sistema da Bacia do Rio Acre nos municípios das regionais do Alto e Baixo Acre, bem como nas APAs no município de Rio Branco”.
Em junho do ano passado, o ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, desceu e subiu os barrancos do rio Acre na capital para ver de perto a agressão sofrida pelo manancial, com toneladas de esgoto sendo despejados sem nenhum tipo de tratamento, responsabilizando os 20 anos de governos do PT pelo descaso. À época prometeu ajuda financeira para mitigar estes efeitos. Passado um ano, nada de concreto ocorreu, além do discurso político.
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