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POLÍTICA

Há oito anos no acolhimento a mulheres vítimas, procuradora Patrícia Rêgo diz que “PL do Estrupo” é inadmissível: “Oportunismo eleitoreiro”

Há oito anos no acolhimento a mulheres vítimas, procuradora Patrícia Rêgo diz que “PL do Estrupo” é inadmissível: “Oportunismo eleitoreiro”

Uma onda de manifestações contra o projeto de lei 1.904/2024, que equipara o aborto realizado após a 22ª semana de gestação ao crime de homicídio ganhou as ruas Brasil afora, manifestações contrárias em diferentes instituições e nas redes sociais.

A procuradora Patrícia Rêgo, do Ministério Público Estadual, falou ao Notícias da Hora sobre o assunto. Para ela, o PL tem cara de “oportunismo eleitoreiro”.

A procuradora lembra que “aborto no Brasil é crime e está previsto no código penal”, porém “o que se busca fazer com a aprovação do referido projeto é criminalizar as vítimas de estupro”.

Na legislação atual, o aborto é punido com penas que variam de um a três anos de prisão, quando provocado pela gestante; de um a quatro anos, quando médico ou outra pessoa provoque um aborto com o consentimento da gestante; e de três a dez anos, para quem provocar o aborto sem o aval da mulher.

Há mais de 30 anos no MPAC, dos quais oito coordenando o Centro de Atendimento à Vítima (CAV), que acolhe mulheres vítimas de violência sexual, Patrícia Rêgo é conhecedora de uma realidade que a maioria ignora ou finge não existir.

“Gostaria inclusive de sugerir aos parlamentares que pudessem vivenciar a experiência de acolher e ouvir a dor, o sofrimento e o desespero dessa mulheres vítimas”, sugere.

Veja a entrevista da procuradora de Justiça Patrícia Rêgo ao Notícias da Hora:

NH: Qual a gravidade do “PL do Estuprador”, o Projeto de Lei 1904/2024, que iguala o aborto acima de 22 semanas ao crime de homicídio?

Patrícia Rêgo: Primeiro é importante esclarecer que a discussão em torno do PL não diz respeito em absoluto sobre a legalizar o aborto no Brasil. Aborto no Brasil é crime, está previsto no código penal. Ponto. O que se busca fazer com a aprovação do referido projeto é criminalizar as vítimas de estupro, aumentando a pena atualmente prevista para essa infração penal (essa sim uma inovação legislativa), já que desde a primeira metade do século passado, a nossa legislação penal prevê duas excludentes de punibilidade para o crime de aborto ( as chamadas “hipóteses de aborto legal”), ou seja, não se pune o aborto quando a gravidez coloca em risco a vida mulher ou quando é resultante de estupro. E mais recentemente, em 2012, o STF reconheceu uma terceira possibilidade, em caso de anencefalia fetal. O PL, portanto, extingue essa possibilidade para as vítimas de estupro “quando houver viabilidade fetal, presumida em 22 semanas de gestação”. Portanto, não seria leviano afirmar que o projeto uma vez aprovado, coloca no banco dos réus literalmente todas as vítimas de estupro, que provocarem aborto, em caso de viabilidade fetal presumida nessas 22 semanas. É preciso ressaltar também que além de criminalizar as vítimas de estupro, o projeto aumenta a pena, que passa a ser equiparada nesses casos, a de homicídio simples, ou seja, de 6 a 20 anos de reclusão, pena essa, diga-se de passagem, desproporcional se compararmos com a do próprio estuprador que é de 6 a 10 anos. Portanto, em tese, uma vez aprovado o projeto, uma mulher vítima de estupro que praticar o aborto com um tempo gestacional acima de 22 semanas, poderia ser julgada e ter uma pena maior que seu estuprador, o que obviamente é um absurdo e não precisa ser doutor em direito pra entender isso, basta apenas ser desumano. Por óbvio, uma alteração como essa na legislação precisa, portanto, ser discutida com muita responsabilidade, com a escuta e participação de toda sociedade, estamos falando de uma questão de saúde pública, da vida e do bem estar de mulheres, crianças e adolescentes. É inadmissível um PL dessa natureza ser discutido em regime de urgência, sem passar pelas comissões, sem escuta pública, sem ouvir especialistas no tema. Não há qualquer justificativa racional para isso. Gravíssimo!

NH: Pode custar a vida de muitas grávidas, em especial, crianças e adolescentes...

Patrícia Rêgo: Concordo. Por uma razão óbvia também, o PL, se aprovado, deve estimular ainda mais o aborto feito em condições inadequadas, insalubres e de risco ( para a saúde e vida ) para as mulheres e meninas estupradas que por óbvio, se decidirem abortar não irão procurar uma unidade de saúde, porque certamente serão responsabilizadas criminalmente. E pra que possamos fazer uma discussão responsável é preciso olhar o contexto brasileiro de violência sexual. O Brasil de taxas altíssimas de estupro e estupro de vulneráveis. Segundo uma pesquisa do IPEA, divulgada em março do ano passado, uma mulher é estuprada no Brasil, a cada 2 minutos. Segundo o Instituto Liberta, mais de 4 meninas com menos de 13 anos são estupradas por hora. O nosso Acre tem a 2ª maior taxa de estupros no Brasil. Chamo a atenção para que as vítimas de estupro no Brasil, são em sua esmagadora maioria, vulneráveis, crianças e adolescentes, em torno de 76 % do total. Como sabemos esse número é subnotificado, porque são coletados em regra, nos casos reportados nos sistemas de notificação de segurança pública, e essa taxa de notificação em regra corresponde a menos de 10% do que ocorre na realidade, o que significa dizer que o número de casos é bem maior. Esses crimes e abusos acontecem em regra na casa das vítimas, por alguém próximo e não por um desconhecido. E se estamos falando de crianças abusadas em casa, em regra, quem deveria protegê-las e noticiar o abuso, é na maioria das vezes, o próprio abusador. Portanto, temos que ter muita cautela, já que estamos como disse antes, falando de vítimas crianças que muitas vezes sequer identificam que engravidaram ou que a própria família oculta intencionalmente essa gravidez. Muitas vezes quando a notícia da gravidez chega ao conhecimento das autoridades, a gravidez já está avançada, podendo estar acima dessas 22 semanas. O PL, portanto, uma vez aprovado, vai dificultar bastante, no meu sentir, o trabalho das autoridades, infligindo às vítimas um tratamento cruel, degradante e desumano. Importante ressaltar que o caminho de uma vítima que busca o SUS para garantir o seu direito a um aborto legal, em caso de estupro, já não é tão simples, atualmente. Embora a lei 12845/13 prevê atendimento emergencial e multidisciplinar para ela, que após informada de sue direito, ainda assim, a decisão só será tomada, mediante avaliação médica e orientação psicossocial. Ao contrário, o número de aborto legal no país está muito abaixo do que se imagina, são poucas as vítimas que procuram ou têm acessado o SUS para exercer esse direito. O cotidiano revela que na prática, a dificuldade de identificar a gravidez, o tempo que se leva para isso (no caso de crianças, a burocracia, a falta de informação e deficiência de capacitação adequada no próprio SUS dificultam o acesso a esse serviço.

NH: Me parece que mais uma vez trata-se de um projeto com verniz cristão tratando o tema como uma bandeira da vida e da família...

Patrícia Rêgo: Também, a mim me parece mais oportunismo eleitoreiro. Estamos às vésperas de eleições municipais, num país altamente polarizado e alguns políticos extremistas, diga-se de passagem, pagos por nós, contribuintes, manipulando a opinião pública com argumentos reducionistas e hipócritas, sob o verniz de defender a vida, aproveitando-se da desinformação das pessoas e de sua fé cristã, buscam angariar prestígio eleitoral. Como eu disse antes, a discussão aqui não se trata de legalizar ou não o aborto, ser a favor ou contra o aborto, a discussão aqui se trata de um retrocesso civilizatório, no qual se desumaniza e invisibiliza mais ainda uma vítima de violência extrema como a violência sexual. Trata-se de abolir um direito da vítima previsto na legislação penal desde a primeira metade do século passado. Estamos falando da possibilidade de punir a vítima de estupro com uma pena maior que a pena do estuprador, numa votação em regime de urgência sem fazer qualquer discussão com a sociedade brasileira.

NH: O que fazer para frear a aprovação do PL?

Patrícia Rêgo: Mobilização social e informação qualificada para a opinião pública. Nós, mulheres, somos mais da metade do eleitorado brasileiro. Somos mais da metade da população brasileira, Passamos a vida toda lutando por direitos, dignidade e igualdade, pelo direito de existir, de ser cidadãs, de votar, de exercer o poder familiar, de ter empregos, de vivermos uma vida livre de violência, continuamos e continuaremos lutando. Sempre. Direito não é dado, direito é conquistado à custa de muita luta e sangue, a história mostra isso. Faremos isso por nós , por nossos filhos e filhas e pelas futuras gerações. Por fim, quero dizer que falo aqui não pelo MP do Acre, falo como mulher, cidadã e mãe, mas falo principalmente como procuradora de justiça integrante do MP estadual que atua há mais de 30 anos na área criminal, combatendo violência sexual e há 8 anos coordenando um Centro de Atendimento que acolhe todos os dias mulheres vítimas de violência sexual, gostaria inclusive de sugerir aos parlamentares que pudessem vivenciar a experiência de acolher e ouvir a dor, o sofrimento e o desespero dessa mulheres vítimas. O regime de votação é de urgência, mas ainda dá tempo. O convite está feito!