Andar pelo interior da Reserva Extrativista Chico Mendes, em suas porções na região do Alto Acre, e não se deparar com rebanho bovino é quase uma raridade. Até mesmo os moradores mais tradicionais criam umas “cabecinhas de gado”. Este diminutivo pode é forma de amenizar o grande número de cabeças dentro de suas áreas bem como os impactos que a expansão da pecuária provoca.
Em alguns casos, os moradores já há muito tempo abandonaram o extrativismo e passaram a ser pequenos e médios pecuaristas. A pouca competitividade de atividades como a extração da borracha ou a coleta de castanha é o que tem empurrado muitos deles para a abertura de pastos - o que amplia o desmatamento dentro da unidade de conservação com seus 970 mil hectares.
O plano de manejo da Resex Chico Mendes até permite a criação de animais, mas há limites. Para cada propriedade, o número de cabeças de gado não pode passar de 45. Esta quantidade quase nunca é respeitada. Não se há um número preciso do rebanho bovino dentro da unidade de conservação. A criação de animais também deveria ser apenas uma complementação de renda; hoje, contudo, é a atividade principal para muitos dos moradores.
Este ano, o Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio) iniciou uma das tarefas mais desafiadoras para o órgão: retirar o excesso de boi do interior da unidade. A tarefa não é fácil, ainda mais no atual momento político do país e do estado, com a Bancada da Motosserra iniciando uma ofensiva para fragilizar a reserva e intimidar o trabalho dos fiscais.
Em outubro, agentes do ICMBio - acompanhados de militares do Exército - retiraram 44 cabeças em uma propriedade dentro da Resex Chico Mendes em sua porção no município de Brasileia. Além do número excessivo de animais, a área, segundo o órgão, é ocupada de forma irregular.
O caso foi judicializado e aguarda a manifestação final do Tribunal Regional Federal da 1º Região (TRF1). A ação foi movida por Lucas Gonçalves de Oliveira, de 20 anos, dono dos 44 bois apreendidos. Ele alega ser um “pequeno produtor rural” e que os animais apreendidos são a sua única fonte de sobrevivência, por isso não poderiam ter sido recolhidos pelo ICMBio. Além disso, defende-se ele, não teria ocorrido a devida autuação prévia por parte do órgão ambiental.
O argumento foi aceito, e a terceira vara federal em Rio Branco deferiu o pedido, sendo determinada a devolução dos animais em 15 dias. O Ministério Público Federal (MPF) no Acre recorreu da decisão junto ao TRF1, sediado em Brasília. De acordo com o MPF, o verdadeiro dono dos animais não é o jovem pecuarista de 20 anos, mas, sim, seu pai. E que eles não são tão pequenos produtores rurais.
A partir do banco de dados do Instituto de Defesa Animal e Florestal (Idaf), foi constatado que a família tem mais de 400 cabeças espalhadas em três diferentes propriedades - entre elas a localizada dentro da Resex Chico Mendes. Até maio deste ano, a propriedade no interior da área protegida tinha 315 bois.
“Depreende-se que o agravado tem registrado como proprietário o total de 431 reses de gado bovino e agiu de maneira mendaz ao omitir deliberadamente seu patrimônio, tendo afirmado expressamente na petição inicial que "está completamente sem renda, já que sua única fonte de renda são os animais semoventes apreendidos pelo ICMBio”, diz o MPF na ação de recurso.
A área foi adquirida de forma irregular, em março de 2018, de um então vereador de Epitaciolândia. A compra do lote bem como um desmatamento nele são alvo de inquérito pela Polícia Federal. O caso revela outro problema grave dentro da unidade: o comércio ilegal de pedaços de terra, o que tem provocado uma série de conflitos, como o ocorrido na semana passada resultando na morte de uma pessoa.
“Embora todo o gado esteja registrado em nome do agravado Lucas Gonçalves de Oliveira, na condição de produtor, a leitura desses documentos revela que, nos cadastros de proprietário, o autodeclarado "dono" das áreas é Ocimar Araújo de Oliveira”, pai de Lucas.
Todo o rebanho da família mantido de forma irregular dentro da Resex Chico Mendes estava no nome de Ocimar até meados de 2018, quando ele fez a transferência para o do filho.
Em julho de 2018, Ocimar foi notificado pelo ICMBio para deixar a unidade de conservação, e foi multado, no mês seguinte, por ter desmatado uma área de 84 hectares. “Ocimar Araújo de Oliveira adotou como subterfúgio para livrar-se de suas obrigações legais a transferência de todo o gado mantido na área para o nome de seu filho”, diz o MPF.
O recurso movido pela Procuradoria da República no Acre será analisado pelo desembargador Daniel Paes Ribeiro, do TRF 1. Outras ações semelhantes referentes à retirada de boi no interior da reserva estão em tramitação pelo judiciário.
Enquanto isso, o boi continua avançando a passos largos no interior da mais emblemática unidade de conservação da Amazônia, que leva o nome do líder seringueiro Chico Mendes cuja luta, nas décadas de 1970 e 1980 foi, justamente, contra a transformações da floresta em pasto.
A reportagem tentou entrar em contato com os advogados de Lucas Oliveira, mas não houve retorno até o presente momento.
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