“As próximas gerações dificilmente acreditarão que uma pessoa como esta, em carne e sangue, andou por esta terra”. A frase é de Albert Einstein sobre Mahatma Gandhi. Fazendo um recorte na história e deixando bem guardadas as devidas e inúmeras proporções, daqui a algumas décadas, poucos acreanos acreditarão que um homem abraçou uma causa que foi rejeitada por todos: a luta pelas pessoas em situação de rua.
Mas vamos contar essa história desde o início, quando um casal de ribeirinhos deixou a Vila Japiim, às margens do Rio Moa, e embarcou numa aventura de sonhos de uma vida melhor, rejeitando aquilo que o destino lhes impusera. Era o final dos anos 70, momento em que a extração da borracha perdia o seu valor, culminando na desativação dos seringais, o que arruinou a economia do Acre. Esperança não havia naquelas remotas paragens.
A propriedade ficava em Mâncio Lima, distante 670 quilômetros de Rio Branco. Somente para ir à sede do município, era preciso viajar no mínimo um dia de barco. Em uma época em que as estradas eram intrafegáveis durante oito meses do ano, chegar à capital foi outra epopeia.
Fixaram-se em uma casa no bairro Taquari e passaram por dificuldades de toda ordem. Os mais velhos foram trabalhar na construção civil e em serrarias e, mesmo morando num dos locais mais violentos de Rio Branco, ninguém daquele núcleo familiar enveredou pelo mundo do crime. “A gente não tinha muita coisa, mesmo porque a inundação nos visitava praticamente todos os anos”, relembrou José Janes Gomes da Silva, o Janes Peteca, de 46 anos.
Com apenas cinco anos, ele passava o dia pelo centro da cidade, onde fazia mandados, pedia alimentos e brincava como qualquer criança, inclusive pulando das pontes quando o rio estava cheio. “Eu fui alfabetizado pela professora Marília Santana, mas entrei numa sala de aula somente aos 13 anos”, disse Peteca, assegurando que nunca roubou nem usou drogas.
Concursado do Serviço de Água e Esgoto de Rio Branco (Saerb) e depois do Instituto Penitenciário do Acre (Iapen), foi sindicalista e chegou a queimar a bandeira de um partido em pleno centro da cidade. “Não tenho vergonha nem orgulho porque isso faz parte de um amadurecimento”, justificou o ativista, que já retirou cerca de 20 pessoas em situação de rua. Respeitado pelas autoridades e pela opinião pública, ele nos concedeu esta entrevista nas proximidades do Rio Acre. Vejam alguns trechos:
“O verdadeiro sentido da vida é ajudar o próximo”
Notícias da Hora – Quem é o Janes Peteca?
Janes Peteca – Sou policial penal, casado, tenho três filhos, ativista dos direitos humanos e membro do Conselho Nacional e do Movimento Nacional das Pessoas em Situação de Rua. Ah, eu fiz quatro graduações, inclusive na área de Segurança Pública. Com todo respeito à formação intelectual, isso não vale nada se você não se importar com o semelhante. Este é o verdadeiro sentido da vida.
Notícias da Hora – Você atuou no Sindicato dos Urbanitários, nas centrais sindicais e no Sindicato dos Policiais Penais. Fale um pouco disso.
Janes Peteca – Os urbanitários e as centrais sindicais fizeram parte da minha formação e trajetória. Quando estive à frente do movimento dos agentes penitenciários, tivemos que construir uma imagem positiva do policial penal, que não era bem visto por alguns segmentos da sociedade. Graças a Deus, com muita luta, conseguimos mudar aquela situação incômoda. Também conseguimos o maior aumento salarial que uma categoria da segurança pública teve. E aí acabou o meu ciclo no movimento sindical.
Notícias da Hora – Esse problema que você abraçou é tão complexo e delicado que os religiosos dizem: “isso é para quem tem o chamado”. Como a causa dos moradores de rua entrou na tua vida?
Janes Peteca – Eu fui da rua, né! O Álvaro Mendes, da Associação de Redução de Danos do Acre, instituição da qual faço parte, me convidou para um debate na Assembleia Legislativa. Depois fui eleito o representante das pessoas em situação de rua do Acre. Em Brasília, com cerca de dez ministérios, elaboramos o plano nacional e estadual das pessoas em situação de rua. Sentamos com as maiores autoridades do país.
“Fui preso duas vezes por defender trabalhador”
Notícias da Hora – Explica como é trabalhar com essas pessoas.
Janes Peteca – É um desafio. Por ser complexo, muitos dizem que é um trabalho de “enxugar gelo”. Nem tanto assim. Eu já ajudei a tirar cerca de 20 pessoas daquela situação. Os grupos e as pessoas de rua não são homogêneos. Ao contrário, o que mais existe é diversidade. Existe o grupo que só usa crack, os que usam cocaína, os que usam somente álcool de farmácia, os que usam álcool de carro e os que usam tudo. Existem aqueles que ganham o seu dinheirinho e vão consumir drogas, bem como aqueles que cometem roubos e furtos.
Notícias da Hora – Como ajudar pessoas que vendem a própria alimentação para comprar droga?
Janes Peteca – Aqueles lixos revirados, que a gente encontra pela manhã, são eles à procura de comida. Podem até vender o almoço, mas não podem fugir da fome. Quando lhe pedirem um salgado, parta-o e entregue, ou seja, não deixe de dar comida para essas pessoas. Alguns deles precisam passar por um processo de desintoxicação. Existem unidades de saúde para atender essa demanda? A dependência é uma doença e precisa ser tratada de acordo com o seu estágio. Outros, principalmente por causa do uso abusivo, precisam de um tratamento psiquiátrico.
“Estamos vivendo uma hecatombe social”
Notícias da Hora – Por que existem tantas pessoas nessa situação?
Janes Peteca – É um problema estrutural, uma vez que somos um estado subdesenvolvido, onde o desemprego campeia, além do fato de que fazemos fronteira com os maiores produtores de cocaína do mundo (Bolívia e Peru). A pobreza, fruto da desigualdade, está cobrando a fatura. Da pandemia para os dias atuais, houve um crescimento vertiginoso dessas pessoas. Estamos diante de uma hecatombe social, ou seja, de um flagelo que pode chegar à casa da gente. O poder público e a sociedade não podem mais fechar os olhos para essa realidade. Muitos estão saindo do sistema prisional e indo direto para as ruas.
Notícias da Hora – O que o movimento está reivindicando? Você está à frente de um projeto. Comente sobre isso.
Janes Peteca – Reivindicamos moradia, emprego, educação, saúde e formação profissional. O nome do projeto é Reciclando Vidas e Transformando Pneus em Oportunidades. Durante a última alagação, eu percebi um grande número de pneus descartados nos cursos d’água. Eu escrevi esse projeto e apresentei para o pessoal da prefeitura, que o adotou. Ele beneficia as pessoas em situação de rua, os egressos do sistema prisional e as mulheres vítimas de violência doméstica. Com o apoio do Tribunal de Justiça e do Ministério Público, já tivemos grande progresso na reinserção social. Podemos e faremos muito mais. Estou muito feliz.